No poema “A lição de poesia”, João Cabral de Melo Neto encena a “luta branca sobre o papel” (Melo Neto, 2020, p. 72) e manipula “as vinte palavras recolhidas/ nas águas salgadas do poeta” (Melo Neto, 2020, p. 73), a fim de, com o uso da metalinguagem, indicar o “funcionamento” da “máquina” de escrituração. “Densidade” e “evaporação” são palavras usadas por Melo Neto, e que recolho aqui para tratar do livro de contos A campa é outro berço, de Bruno Lima (2022). Se para o dicionário “densidade” é uma propriedade física que relaciona a massa de um material ao volume que ele ocupa, Bruno Lima justapõe e sobrepõe uma profusão de autores, leituras e conhecimentos da vida literária e do trabalho com a literatura em seu conjunto de contos. Mas essa densidade do saber individual só se realiza no procedimento de “evaporação” desse saber, ou seja, no trabalho de tragar e traduzir leitura em escrita, quando aquilo que seria do “iniciado” é apresentado (e presenteado) ao “leigo”. E é isso que Lima entrega ao seu leitor. Esse, por sua vez, é o tempo todo cobrado e instigado a ler mais, saber mais, para além daquilo que está presente (em presença) nos contos: Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Iessiênin, Kafka, Rubem Fonseca, Marcelino Freire, Sérgio Sant’Anna e, o mais presente, Machado de Assis, entre outros, transitam pelos 16 textos, irrigando a sabedoria do autor e a imaginação do leitor. Imaginar ainda é uma competência da literatura? Essa pergunta atravessa o livro. Seja nos exercícios de formas e tipos de escrita – carta, notícia jornalística, diário, testemunho, autoficção; seja no conteúdo e nas reflexões dos narradores. O livro se insere no debate contemporâneo dos limites da ficção, pois ao longo das narrativas quem fala fricciona a realidade do ato de escrever. Desficcionalizar-se legitima mais ou menos a literatura? Outra pergunta que os contos em seu conjunto de temas e experimentações apresentam. No fundo, o acontecimento literário, por mais próximo (e é sempre uma aproximação, jamais o factual), sempre incita a imaginação. Não sou, mas, por empatia, me aproximo do acontecimento – realista ou esotérico – vivido por outrem. Ser outro sem deixar de ser eu ainda é a matéria-prima da arte – essa resistência ao sistema massificador de subjetividades. É o que parece propor Bruno Lima, sem reduzir o debate à busca de essencialidades. Não se trata de distinguir ficção de não ficção, mas de friccionar essas instâncias porosas: sonhamos lendo autoficções, do mesmo modo que nos atemos ao chão do ideológico por meio de certas ficções. Até porque autoficção é não apenas autorreferência. A defesa, repito, é do direito à imaginação, por isso o leitor é o tempo todo levado a problematizar certezas e verdades. Nesse sentido, A campa é outro berço seria um livro para leitores iniciados. Quem lê e não conhece o que Bruno Lima leu e cita pode fruir as narrativas, as experimentações formais para o gênero conto (talvez mais facilmente reconhecíveis em “Esquizo futurista” ou em “Era uma vez…”), eis a competência da “evaporação” realizada, pois cada átomo-referência literária está muito bem gaseificado; no entanto, a fruição ganha muito mais poder reflexivo quando quem lê articula e problematiza conhecimentos e entende a “densidade” posta em cada conto, relacionando-os, como a grande “ciranda esquizofrênica”, resultante ao final do livro. Repito e corrijo, seria um livro para leitores iniciados, não fosse um livro de formação de leitores. Quem lê Bruno Lima é levado a, barthesianamente, “levantar a cabeça”, articular, pesquisar, apurar, ruminar. Na orelha assinada por Laura Barbosa Campos somos informados de que Bruno Lima é ensaísta e poeta, “leitor contumaz”. Essa iniciação do autor, doutor em Literatura Comparada, é generosamente compartilhada com o leitor, afinal, “um livro tem de ser a picareta para o mar gelado que há em nós”, escreveu Kafka, citado por Laura. Em A campa é outro berço estamos em pleno mar. O “gelado” mar kafkiano se percebe nas elucubrações das vozes narrativas permanentemente questionadoras da função da literatura agora: Enquanto os outros usuários, desde pessoas comuns a escritores e intelectuais, escreviam opiniões e fomentavam discussões acerca dos males atuais, Bruno Lima limitava-se a si mesmo, uma banalidade que não deveria interessar a ninguém (Lima, 2022, p. 23). A inscrição do nome do autor é significativa e releva a sua inquietação com o momento atual, tempos de identitarismos, pandemia, ascensão do fascismo, em que a literatura é (novamente e sempre) questionada sobre seus efeitos de representar e autorrepresentar singularidades, numa cultura (cada vez mais, vide o excesso de realidade e, ao mesmo tempo, disseminação de fake news) massificante: Escrever é hoje fazer-se o centro do processo de palavra, é efetuar a escritura afetando-se a si próprio, é fazer coincidir a ação e o afeto, é deixar o escritor no interior da escritura, não a título de sujeito psicológico […], mas a título de agente da ação (Barthes, 2012, p. 22). Os narradores de Bruno Lima estão à procura de certa sensibilidade perdida. Cismados e ensimesmados, esses narradores problematizam. Dito de outro modo, […] os entendidos os doutores e curadores e editores e professores e críticos e teóricos e coisa e tal preferem esforço porque esse negócio de talento não tem nada a ver e sim a prática e disciplina e esforço e labor e suor que fazem de qualquer fulano um escritor pronto na chapa pra ser criticado e eruditado […] (Lima, 2022, p. 29). E a voz narrativa de “Esquizo futurista” completa: “[…] é preferível minicontear marcelinofreiramente no tuíter assim todos leem no metrô e no ônibus sempre a caminho de algum lugar já que a vida urge e o dinheiro é escasso […]” (Lima, 2022, p. 32). Eis o jogo entre individualidade (“densidade”: “Como odiava vestir o uniforme que me tornava igual a todas as outras crianças” (Lima, 2022, p. 10), lemos em “Cadeira de balanço”) e sociedade (“evaporação”: “Autor, ainda que defunto, coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou mais um anônimo, mas sim um escritor” (Lima, 2022, p. 17), lemos em “Redenção”), que os narradores do livro encenam. E fazem isso mimetizando, copiando, representando as dicções de narradores canônicos da nossa literatura brasileira. Se a literatura é, ainda, em alguma medida, a encenação por palavras, isto é, a inscrição de um eu no papel, como encenar o eu (esse outro escrito)? “[…] a outridade deve adequar-se e autocensurar-se antes de qualquer coisa […]” (Lima, 2022, p. 31). Devorando o outro, deixando-se inseminar artificialmente pelo outro, filigranando o outro, através da revelação da teia palimpsesta constituinte de mim (“autor-defunto”, porque escrito). “Eu morri”, começa o narrador de “Memórias de um segundo eterno”, derradeiro conto do livro. Como me escrever morto? De fato, o livro começa e finda com narradores memorialistas, tendo Paulo Honório e Bento Santiago como referências, mas entre a abertura e o fechamento há o mar, lembra-nos Kafka, e as várias formas de atravessá-lo. Destaco, por exemplo, as histórias infantis adultizadas, com o deslocamento e a ressignificação do termo “princesa”, no conto “Era uma vez…”, narrativa que trata dos traumas decorrentes de um estupro. Como escrever tal experiência sendo um autor-homem (essa redundância!)? Capitu, Madalena e Diadorim são evocadas para questionar: “Por que demorou tanto tempo até que a ABL admitisse Raquel de Queiroz em seu panteão literário?” (Lima, 2022, p. 38), ou: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente ainda morre assim. Mas – mas eu também?!” (Lima, 2022, p. 41). Perguntas que repercutem em “Admirável mundo velho”, conto que mais se aproxima (sempre esse exercício de aproximação) do Brasil de hoje, ao evocar o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e a ascensão do bolsonarismo. Se para Nicole Loraux, “a tragédia coloca as moças em cena para dela tirá-las e para entregá-las, longe dos olhos, ao cutelo do degolador”, pois “faz bem matar as moças em pensamento, em narração” (Loraux, 1988, p. 11), nas narrativas de Bruno Lima o efeito de real provoca o desconforto necessário à reflexão em torno das estruturas sociais que permitiram a morte violenta de Marielle Franco, para quem a “vida acadêmica corria concomitante à militância” (Lima, 2022, p. 39), semelhante à personagem de “Era uma vez…”. Ambas mortas, por homens-autores (novamente essa redundância!). “E a maldição é que não há prova alguma de que minha com-panheira seja infiel”, escreve graciliano-machadianamente um dos narradores de Lima (2022, p. 43). Nesse sentido, o conto sintomaticamente intitulado “Verdade” é o que mais se aproxima do real: “A realidade e o realismo não são uma besteira?” (Lima, 2022, p. 67), pergunta a voz narrativa do conto “Carta ao filho”, pela via da descrição dos bastidores do gesto de escrever. Nessa narrativa, o tom jornalístico e ambíguo instiga o leitor, aquele que “[…] pode ser capaz de imaginar e se solidarizar com o que sentiu Proust, mas nada como, ele mesmo leitor, sentir o sabor das madeleines” (Lima, 2022, p. 78). Novamente, “imaginação” e “empatia” aparecem como questões da escrita. Não foi isso o que torturou a autora de A hora da estrela? Ou seja, sabendo-se incapaz de registrar a vida da outra, a escritora Clarice Lispector não se instrumentalizou do fracasso inerente à arte e escreveu Macabéa através do médium Rodrigo S.M.? Ou seria o contrário, a autora é a médium de Rodrigo (homem-autor, logo, historicamente autorizado a narrar a vida de outrem)? “A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M.” (Lispector, 1984, p. 18). Não é sobre esse “falso livre-arbítrio” que Bruno Lima escreve, ao anotar em itálico, como uma voz estrangeira: “Desprezo a tentativa torpe de contar a minha história, ou melhor, de a roubar, pois agora essa narrativa não é minha, mas dele” (Lima, 2022, p. 76)? Ou quando agradece: “[…] amém às icamiabas às janaínas aos pretos velhos aos caboclos aos exus porque sou eu e sou outro sou caleidoscópico” (Lima, 2022, p. 31)? Cito Clarice porque sua presença não está evidente no livro de Bruno, embora, como tento demonstrar, a maquinaria clariceana e seu pacto de leitura estética estejam. Sendo um livro na clave da metalinguagem, A campa é outro berço, frase, aliás, tomada de Brás Cubas e que abre “Psicografia”, faz um conto se desdobrar em outros, com personagens e citações em circularidade, e que enreda enquanto entretém o leitor. É a luta entre clássicos (“densidade”) engenhosamente ativada e trabalhada (“evaporação”) por Bruno Lima, autor-cavalo (a serviço de) da literatura: […] me consolo escrevendo que todos os gênios de toda a humanidade de todos os tempos foram incompreendidos e se serei um desses ou melhor se sou um desses sei lá deixa pra lá é melhor deixar mesmo pra lá afinal de contas falar em genialidade poderia passar a ideia equivocada de que realmente considero isso mas nada disso sou alguém tentando escrever qualquer coisa que valha a pena no correr do teclado […] (Lima, 2022, p. 31). Esse autoabandono, essa dúvida em relação à potência-de-si, resultado de certo lugar desprestigioso ocupado pela literatura em nossa sociedade, arranha a garganta das vozes narrativas do livro, muitas vezes: “Queria ser diferente, fazer alguma coisa que me distinguisse dos demais […]” (Lima, 2022, p. 14); “Não é a inveja que me consome, mas a traição” (Lima, 2022, p. 21); “Sou eu que crio. E sempre em primeira pessoa. Eu falo; eu conto; eu me exponho; eu trabalho; eu historio. Eu faço questão de usar todos os pronomes que me digam respeito aqui, abundantemente. Eu sou protagonista, jamais coadjuvante” (Lima, 2022, p. 27); “Jamais realizei algo notável e nada de bom nunca me visitou” (Lima, 2022, p. 58); “Sou réu confesso, por isso escrevo, desconfiado de que não serei lido, minha tônica” (Lima, 2022, p. 68). Claro está que os narradores (as vozes narrativas) de Bruno Lima exigem bastante do leitor. “A diferença entre mim e as plantas é a capacidade de pensar, muito embora não saibam que a possuo. Todos ignoram os pensamentos que correm aqui” (Lima, 2022, p. 45). É contra essa ignorância que se escreve. Por exemplo, o narrador em estado vegetativo de “Não” compartilha seus pensamentos com um improvável interlocutor (no livro, transmudado em leitor). Ele ficou 35 anos em coma. Marielle (essa fissura do real no literário, porque agora personagem) retorna aqui como enfermeira: “Ela vangloriava-se de ter local de fala, mas não atinei exatamente o que seria aquilo. Só se pode falar em determinado lugar?” (Lima, 2022, p. 48), estranha o narrador-personagem, em choque com a nova realidade. Mas, além de Marielle, havia Maria das Dores, e, durante a pandemia de Covid-19, restara apenas Jair, um enfermeiro fascista que dizia que, “graças ao presidente, alcunhado de mito, o país não se vergaria aos chineses, vermelhos propensos a destruir o mundo” (Lima, 2022, p. 53). Inconformado, embora friamente, o narrador-personagem, como num passo de mágica, levanta-se de sua cama e se volta contra o enfermeiro “despolitizado e ignóbil”: Talvez o sono por tanto tempo tenha me dado tamanha disposição, havia muita energia em mim. Matei Jair com minhas próprias mãos, ainda sem entender o que acontecera com o país. Sem compreender o que sucedera comigo. Um homem sem história é nada, e eu não possuía a minha (Lima, 2022, p. 54-55). Já no conto seguinte, “A comédia desumana”, outro narrador nos diz: “Contentava-me com a vida que vivia por empréstimo dos personagens dos livros que lia. A arte imita a vida é uma grande falácia. Livros são interessantes, ricos, complexos, eternos. Se eu destruísse meu exemplar de Dom Quixote a obra permaneceria” (Lima, 2022, p. 58). Volto ao poema de João Cabral. Lá, como nos contos de Bruno Lima, o leitor lida com a desautomatização do próprio olhar, preso naquilo tudo que supõe saber, ler, pensar. A rotina e o protocolo dessas leituras matam o desejo, logo, matam a literatura, como sugere o conto “Moto-contínuo”. Cabralinamente, Bruno Lima convoca-nos ao “susto das coisas jamais pousadas / porém imóveis — naturezas vivas” (Melo Neto, 2020, p. 73), tão óbvias que só a linguagem de um rigoroso escritor-leitor pode tragar (condensar) e traduzir (evaporar). “Quincasborbeei” (Lima, 2022, p. 66-67) é a melhor conjugação da pessoa que fala por trás das vozes que (se) escrevem nos contos de Bruno Lima. Talvez por isso, tensionando inclusive a bandeira de Melo Neto, o autor de A campa é outro berço afirme que “a poesia é pra poetas que não são máquinas de fazer versos” (Melo Neto, 2020, p. 31).
Leonardo Davino de Oliveira é doutor em Literatura Comparada e professor associado de Literatura Brasileira na UERJ. Desenvolve pesquisa sobre poesia e vocoperformance. É autor do blog Lendo canção (lendocancao.blogspot.com) e autor dos livros Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso (2012); De musas e sereias: a presença dos seres que cantam a poesia (2021), Prêmio Oswald de Andrade, gênero ensaio, da União Brasileira de Escritores – Seção Rio de Janeiro (UBE-RJ); e Domingou apandemia (2022).