Davy Nabuco, Italo Oliveira e Mateus Uchôa, do curso de Letras da instituição, interligam vivências distintas do mundo por meio da criação em versos
Comunicação profunda e insaciável, a poesia germina em uma diversidade de territórios da alma. Acessa as alegrias e os incômodos, atravessa o insondável. Não à toa, foi em meio aos escombros da pandemia de Covid-19 que três amigos não apenas intensificaram a relação de parceria, como deixaram que a criação em versos guiasse o rumo da inspiração.
Nesse movimento de conexão entre vivências e olhares, Davy Nabuco, Italo Oliveira e Matheus Uchôa publicaram o livro “Ritual do falso”. Em pré-venda, a obra chega ao público por meio da Caravana Grupo Editorial, situando o vigor de um solo poético tecido a seis mãos. Os três autores são estudantes do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC) e enxergam, na obra, uma forma de ampliar os fazeres advindos da instituição.
“O livro não passou por nenhuma etapa muito formalizada, as coisas realmente só foram acontecendo. Mas, se for para pensar num pontapé, podemos dizer que as coisas começaram quando decidimos dividir nossa experiência de escrita um com o outro durante a pandemia. Inclusive, boa parte dos poemas surgiu nesse contexto”, conta Italo Oliveira.
No início, os amigos apenas enviavam as criações que iam fazendo, liam os textos entre si e trocavam alguma ideia sobre. Certo dia, porém, repararam que esse processo já havia acumulado uma quantidade razoável de escritos, algo que, por si só, já formava um projeto como o de um livro.“Daí chegamos a conversar sobre uma possível formalização da iniciativa, uma organização dos poemas, mas acabou que essas coisas só se agenciaram mesmo com o tempo, bastante conversa e muitos parêntesis”.ITALO OLIVEIRAPoeta e estudante do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará
Passada toda a dinâmica, agora a publicação deseja alcançar leitoras e leitores ávidos por travessias em que a palavra e os sentimentos tomam rumos tripartidos, ao mesmo tempo que tão juntos porque reflexo de múltiplos mergulhos.
COESÃO COLETIVA
Falar e pensar o outro – indagando se esse próximo é realmente possível ou se os poetas estão apenas “incorrigivelmente atrapados” em si mesmos, conforme descreve Italo Oliveira – é o ponto de coesão da obra. Nessa seara, também entra em discussão se esse pensamento já não seria o cúmulo de um reducionismo inocente, inflexões que, consciente ou inconscientemente, pautaram o processo de feitura dos poemas.
“E não seria a linguagem ela mesma um outro, uma maneira de sermos outro enquanto mergulhamos nela?”, questiona-se Oliveira. Por sua vez, no que diz à questão da interdisciplinaridade que integra o material, os poetas acreditam que a literatura é provocada pelo mundo e que o mundo é provocado pela literatura. As letras bebem do cotidiano e vice-versa, e isso é algo do qual não há como escapar.
No total, 43 poemas – sem identificação de autoria e sem o uso de ilustrações – permeiam esses e vários outros pontos. Por se tratar de uma assinatura coletiva, Davi, Italo e Mateus trabalharam para construir um material diverso a nível de estética e conteúdo, o qual também fosse direcionado para a formação de uma unidade.
Apesar de tentarem igualar o número de poemas, cada autor colaborou com a quantidade que achou mais assertiva para a coerência do livro. Segundo Italo, é difícil precisar como o fazer poético de cada participante é explicitado no exemplar. “Essas são questões que nós nunca nos demandamos. Para nós, esse fio da meada sempre foi claro de uma forma não-clara, digamos assim, não-explícita”, situa. “Passamos alguns meses escrevendo, lendo e comentando um ao outro – o que com certeza marcou nosso processo, delimitou nossas escritas e nossas preocupações, ao mesmo tempo que as entrelaçou. É um jogo complexo e difícil definir seus traços gerais e particulares, classificá-los. Vai muito além de nós e de nosso interesse, mas com certeza não do leitor. Este está muito mais confortável para fazê-lo”.ITALO OLIVEIRAPoeta e estudante do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará
AMPLIAR OS FAZERES
Ao amplificar as discussões e fazeres fomentados na universidade em que estudam, os poetas igualmente refletem sobre essa instância de produção una, comum entre os três. De acordo com eles, a autoria coletiva não foi pré-definida enquanto projeto, nem havia intenção de manifesto. Apenas acharam que constituir tudo de outra forma seria incabível e sem sentido.
“Inclusive, a ideia da coletividade autoral sobre os poemas foi um ponto tão pacífico entre nós que quase não precisamos mencioná-lo enquanto pensávamos o livro: quando o foi, todos nós já estávamos com isso na cabeça desde o princípio”, dimensiona Italo.Por outro lado, eles não acreditam que a iniciativa necessariamente rompa algum muro da Universidade, uma vez que muitos intelectuais acadêmicos já organizaram livros e revistas em autoria coletiva. “A própria poesia marginal da nossa cidade também fez isso. Claro que existem modulações e modulações de como isso pode ser feito, mas, de toda forma, foi algo que veio sobretudo da nossa troca de experiência”.
Uma vez considerando a produção poética em Fortaleza, os autores ponderam que o cenário literário em todo o Ceará tem se movimentado para os mais diversos sentidos nas formas e nos temas, explorando desde problemáticas clássicas da poética até pautas políticas de maior destaque recente – a exemplo de gênero e sexualidade. Na visão deles, é possível observar, sobretudo, uma poesia que tenta se apropriar e se aproximar dos indivíduos e de suas questões.
“Temos acompanhado principalmente artistas como Kah Dantas, Dauana Vale, Letícia Bailante, Mike Anderson e Renato Pessoa. Contudo, a lista de nomes atuantes na cena cearense é vasta e significativamente diversa”, dimensionam. “Entendemos o ‘Ritual do falso’ como uma obra que também dialoga com a literatura cearense, contendo inclusive uma homenagem ao escritor José Alcides Pinto. Trata-se, porém, de um livro que ainda está por se constituir enquanto obra da cena literária estadual”.“Fizemos o que achamos que deveríamos e agora, de certa forma, o livro não é mais nosso. E a pandemia ainda não acabou, ela ainda está aqui, entre nós e conosco. Nesse contexto, o que podemos querer é que nossa obra seja algo, tão simplesmente: algo que alguém possa achar minimamente interessante ou algo que outra pessoa possa achar a mais completa baboseira”.ITALO OLIVEIRAPoeta e estudante do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará
Uma percepção que se conecta aos intentos do projeto desde o início. Segundo Italo, o trio nunca imaginou uma leitura definida do material, nem um contato específico ou uma consequência para os possíveis leitores. “Isso não nos cabe, mas que todos nós estamos precisando de alguma coisa, estamos. Enfim, algo”, completam.
Ainda sem data de lançamento marcada, já se sabe, contudo, que este momento deve acontecer de maneira virtual, em formato de entrevista pelo perfil do instagram da Caravana Grupo Editorial. Aguardemos.
Ritual do falso
Davy Nabuco, Italo Oliveira e Mateus Uchôa
Caravana Grupo Editorial
2021, 64 páginas
R$ 34,90 (em pré-venda neste link)
> LEIA O POEMA “DIAS DE LEVANTAR DEFUNTOS”, PRESENTE NA OBRA
dia de levantar defuntos
o corpo ocupará apenas o espaço do corpo
e nos chamarão por pronomes
impávidos espectadores de uma Pompeia
esqueceremos que há contornos nos abismos
ao claustro nomearemos exílio
e sorriremos querubins com dentes de quimera
entoaremos canções e voltaremos às bolas de gude
como se fosse descoberto um mistério
não há lição em repetir ritos
fonte: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/estudantes-da-ufc-publicam-livro-de-poesia-fruto-de-uma-maior-amizade-durante-a-quarentena-1.3123318