Em março de 2019, estreava no El Trece a telenovela que viria a ser uma verdadeira febre na terra do deus Argentarius: Argentina, Tierra de Amor y Venganza (ATAV), dos escritores Carolina Aguirre e Leandro Calderone, e sob a produção da Pol-ka. E que comecei a assistir por acaso, em 2022, e sem grandes expectativas. Para mim, era apenas mais uma telenovela e que eu gostaria de assistir pelo simples fato de ser argentina. Certo dia, me dei conta de que não conseguia parar de pensar em ATAV. Cheguei a sonhar que eu estava lá em CABA com Aldo, Raquel, Bruno e Lucía, imaginem… Por sorte, eu estava de férias. Digo isto porque não me era possível fazer nada, a não ser “maratonar” os episódios um após outro até o dia findar. Ia dormir impactada. Descobri pouco tempo depois que os argentinos estavam assim como eu, em um estado de hipnose ou obsessão — como queiram. É fato que há muita realidade em ATAV, já que os autores inseriram acontecimentos que sucederam (e ainda sucedem), não apenas na Argentina, mas em muitas partes do mundo como tráfico humano, prostituição, discriminação e corrupção política. Sem mencionar o protagonismo feminino e as alusões a escritoras fundamentais na História da Literatura Argentina como Alfonsina Storni e Victoria Ocampo, o que para mim, que aliás sou uma eterna fã das irmãs Ocampo, me levou a um êxtase intraduzível. Contudo, meu encantamento pela produção era sui generis e foi pensando sobre isso que me veio um “estalo”. O imaginário é mesmo como um túnel… e entrei nele assim como os personagens de ATAV; no meu caso, um túnel do tempo, pois para além de todos os temas obviamente ligados à História da Argentina estava a cereja do bolo, e a razão do meu fascínio: LUCÍA. Como descendente de argentinos gauchos da fronteira e leitora de Mariana Enriquez, folclore argentino e mitologia do Río de la Plata me soam familiares, motivo pelo qual a Lenda de Lucía Miranda não me passou despercebida. O que ocorreu comigo é que eu inconscientemente associei Lucía Morel a Lucía Miranda. A Morel e a Miranda, as duas, sim, tão humanas — por vezes confusas, por vezes corajosas, porém sempre muito reais, tão parecidas com a mulher que nós somos nos dias de hoje. A peculiaridade sobre Lucía Miranda é tratar-se de uma oratura tão antiga quanto o território argentino, que trazia a figura feminina como uma personagem principal inspiradora e admirável. Apesar de todas as variações folclóricas e das apropriações compostas primordialmente pelo paraguaio Ruy Díaz de Guzmán, pelas argentinas Rosa Guerra e Eduarda Mansilla, e pelo Padre Pedro Lozano, que converteu a lenda em peça teatral, a primeira escrita em Buenos Aires, Lucía Miranda ao longo dos séculos, manteve um status típico do arquétipo literário do herói, geralmente ligado a personagens masculinos. E, para além disso, Lucía Miranda passou ao nível de “mito”. As duas Lucías (a espanhola e a criolla), foram disputadas por dois homens (um expedicionário espanhol e um cacique na lenda; e um catalão rico e um espanhol pobre, na telenovela) que rivalizaram. Em ambos os casos, intrigas, cavalos, militares, batalhas, sequestros, escravos, resgate, prisão, violência contra a mulher, vingança, e ela, Lucía, a que foi mantida cativa — a cativa branca — que, encontrava seu verdadeiro amor às escondidas, e, ao final, entrou para a história como protagonista de uma lenda de amor. Lucía me fez viajar ao passado, onde eu pude vivenciar a força feminina em sua plenitude, compreender que sim, las mujeres siempre fuimos fuertes, e acredito que isto foi o maravilhoso, o fantástico, o mágico e o que fez de mim uma aficionada por ATAV, uma a mais no planeta, ansiosa pela desejada segunda temporada. E, que venham mais Lucías por aí, ¡dale!
Clarissa Xavier Machado é professora, graduada em Letras, Direito e pós-graduada em Tradução e Literatura Brasileira. Natural do Rio de Janeiro, reside em São Lourenço, MG, desde 2017. Cresceu ouvindo boleros, tangos e histórias sobre sua bisavó argentina. É apaixonada por Buenos Aires e pela literatura argentina, sendo fã especialmente de Selva Almada, Liliana Bodoc, Borges, Sábato, Piglia, Eloy Martínez e das irmãs Ocampo.