Quando uma página soa autêntica, isso não se deve à vida, mas ao talento do autor. A literatura não copia a vida, ela a inventa, ela a provoca, ela a ultrapassa […] (Eric-Emmanuel Schmitt, 2002, p.21).
A narrativa ficcional prende o leitor, e por vários motivos. Sobretudo quando atiça, de modo especial, os elementos constitutivos de um livro, elementos comuns e indispensáveis à sua construção: personagens, narrador, enredo, diálogos, tempo e espaço. De um modo geral, na narrativa simples, esses elementos não são nada extraordinários, quando apenas cumprem a função de relatar, detalhar, contextualizar. Mas na boa Literatura, em poesia ou em prosa, esses elementos tornam singular, particular, um modo de trabalhar a linguagem de modo a afastar os objetos do comum, as ações, do corriqueiro, trazendo estranheza à própria linguagem literária. Essa estranheza constitui a singularização do discurso de cada escritor, em determinado texto, despertando uma particularidade da escrita de criação batizada pelo velho conceito russo de “ostranenie” criado pelo teórico russo Viktor Chklóvski (1893-1984), em texto de 1917 que ficou famoso, “A arte como procedimento”.1 Nele, o pensador, considerando não só a produção criativa, mas seu efeito no receptor, leitor ou espectador. Ressalta um importante princípio pertinente à natureza da apreciação da obra de arte: o “ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que já é ‘passado’ não importa para a arte” (1978, p.45). O procedimento, mencionado no título do trabalho, é aquele que faz com que o que está dito traga a surpresa do olhar inaugural sobre o que se vê, ainda que o que se vê seja algo conhecido, como um amanhecer, por exemplo. O estranhamento (“ostranenie”) de que fala Chklovski é a sensação, produzida no leitor, de que aquilo que lê o toca como se fosse uma descoberta nova. Se o texto provoca este efeito de tornar estranho (novo) o que é familiar, então o escritor conseguiu criar uma ‘singularização’: renovado, o objeto foi singularizado, os elementos da composição do texto conseguiram abalar a natureza do que foi dito, tornando tudo inaugural, seja enredo, personagens ou ambiente. Se aconteceu o processo, o leitor percebe que lidou com um obscurecimento da forma e lidou com a “dificuldade e [a] duração da percepção” (Chklovski, 1978, p. 45).
Trilogia curta da vida breve
Vida louca vida, vida breve Já que eu não posso te levar Quero que você me leve Vida louca vida, vida imensa Ninguém vai nos perdoar… (Cazuza)
Esse modo especial de organizar um mundo é traço, não de um escritor, mas de uma determinada escritura que ele produz. Isso que a personagem da “editora”, no filme Best-seller – A última turnê2, pontifica como sendo uma forma de identificação da obra literária: sua “unidade de efeito”. Isto é, o modo único, especial, com que cada livro investe no leitor. Assegurar esse modo, por recursos adequados de linguagem, e desdobrá-los para explorar com sabedoria e engenhosidade a estranheza da linguagem literária são gestos que definem a competência do um escritor em uma obra. Atingida por essa unidade de efeito, fui tomada de um estado diferente de paixão, ao ler a Trilogia curta da vida breve (BH: Caravana, 2023), do baiano Adroaldo Almeida. O efeito que me tomou e o ritmo ora rápido ora lento em que fiz a leitura me lembraram o tal texto – tão antigo quanto atual – do velho Chklovski. Estava tão fascinada ao acabar as leituras da Trilogia, que quis, como leitora, retribuir à emoção que me envolvera, debruçando-me sobre a habilidade do escritor – que acabara de ler –, de conduzir, com tanta segurança, um tal emaranhado de histórias, ao tempo em que fazia refletir sobre como explorava a riqueza do uso da linguagem. Meu imaginário fora habitado pelo imaginário do autor. Ao buscar um modus operandi da narração neste conjunto complexo, obriguei-me a reler passagens e, atiçada pela curiosidade de penetrar o mistério desta conduta escritural complexa sobre casos apaixonados e comportamentos exaltados, buscar as chaves e as pistas que me permitissem organizar uma leitura em tópicos, para que detalhes importantes não escapassem. Para isso suspendi o efeito da emoção e abri os olhos para as finas estruturas que sustentam essa arquitetura barroca, de colunas retorcidas, perscrutando os traços assemelhados nas três estruturas. Cada um dos romances que constituem a trilogia publicada em um só livro, a seu modo, vai afetar o leitor, fazendo-o apaixonar-se por seus personagens, passando a respirar no ritmo da trama, atordoando-se com as aventuras em que se vê enredado. Para efeito de método de abordagem, ressalto três traços importantes na construção das obras, para me servirem de guia, traços que se foram ressaltando à medida que adiantava a leitura. A intensidade semântica na escolha de títulos e subtítulos me chamou logo atenção: podiam ser a famosa “piscadela cúmplice” de que fala Proust, para sutil alerta ao leitor; também o controle da temporalidade dos acontecimentos, para que, ao adentrar as histórias os guias datados de leitura permitissem ir e vir, e restabelecer uma ordem lógica abandonada ao traçar o fluxo da escrita; ao lado desses traços, as sutis revelações literárias de um escritor-leitor, eclético e apaixonado, por meio de intertextualidades explícitas a enriquecerem a massa de reflexões filosóficas sobre vida e morte, uma espécie de pano de fundo aos acontecimentos, como na ópera do De Falla. Na quarta capa do livro3, anuncia-se que ele resulta da “reunião, de forma encurtada, dos três primeiros romances do escritor: O labirinto dos bárbaros (2016), A última flor da terra (2019) e Em busca de Julio Pakard (2021)”. No caso, a explicação da contracapa apenas fala da trilogia sem aludir ao modo como as obras estariam relacionadas entre si, se por meio de personagens, do enredo, da temática ou da ambientação. Sabemos, apenas, que cada obra pode ser lida de forma independente, uma reunião de três primeiros romances, referindo a uma forma mais econômica de revisar os três, para podar, esmerilhar, lapidar e selecionar e reunir para publicar num só volume. Imagina-se o sentido desta reunião, além do encurtamento, visto na parte inicial do título Trilogia curta, a ideia da suspensão das obras anteriores, que assim tiveram sua vida autônoma abreviada, o leitor vai em busca do sentido menos óbvio, para da vida breve: quem sabe é aí que mora a significação mais profunda de cada uma das obras, aquilo que permitiu reuni-las em uma trilogia? O termo final do título com certeza produz um efeito de sugestão maior. Sabendo-se, pelas intertextualidades que os textos exibem, tratar-se de um escritor apreciador da arte, da literatura, da música, as especulações passam a ser válidas. Na ópera de De Falla, que tem este nome, La vida breve, a história da traição amorosa de Paco para com Salud, que sucumbe à dor ao ver os festejos do casamento de seu amado com outra mulher mais rica, serve, na ópera, para ilustrar a tese, apresentada desde o início no libreto, de que num mundo de trabalhadores que ganham a vida com suor (no caso, são ferreiros) triste é o destino dos que sofrem, dos que “são pregos, e não martelos”: Salud expressa sua dor dizendo que a vida do pobre, que vive sofrendo, tem que ser breve. Na trilogia de Adroaldo Almeida, as três histórias, cada uma a seu modo, trazem manifestações diversas dessa possível ligação entre amor idealizado, amor não correspondido, insustentável ou interrompido por traição, abandono ou outra impossibilidade fatal.
O labirinto dos bárbaros
O que se percebe desde a leitura do Sumário? Os três livros trazem título e, entre parênteses, subtítulos que indicam o fulcro temático de cada um, em paralelismo. O primeiro, O labirinto dos bárbaros, tem como subtítulo “sobre o ciúme e outros bastardos triunfantes”. Se labirinto leva a caminhos com saídas difíceis e falseadas, com poucas possibilidades de se ser chegar bem onde se quer; labirinto dos bárbaros parece espelhar e tornar complexa a expressão: indicar que além da dificuldade natural da cegueira de um labirinto, deve haver alguma crueldade envolvida, pois ou são os bárbaros no labirinto ou o labirinto é algo particular deles. Mas a que tipo de bárbaro refere, só quando se começa a leitura vai-se tendo noção de que os conflitos estão no campo amoroso, como já indicava o termo que aponta, no subtítulo, para o sentimento envolvido, o ciúme. O deslocamento semântico dos bárbaros do título para os bastardos triunfantes do subtítulo, já talvez avise ao leitor que é melhor não confiar nas palavras deste autor, porque elas podem ser perigosas, podem borrar as pistas que pareçam certas. Como a ironia é um traço facilmente encontrado em passagens, descrições e comentários do narrador (como teremos ocasião de ver), a expressão “bastardos triunfantes” pode trazer uma alusão irônica e um tanto satírica aos “bastardos inglórios” de Quentin Tarantino, criado poucos anos antes do lançamento do livro (o filme saiu em 2009, o livro, em 2016). Só que, aqui, são bastardos triunfantes! Na sequência dos nove capítulos vai-se entrando em contato com uma história construída em ritornelos paralelos. Os crimes da abertura, bem como os personagens envolvidos, apresentam-se aos poucos e aos blocos, à medida que já se tem dados suficientes para compreendê-los. Logo no segundo parágrafo do capítulo 1: Mansa e silenciosa, amanhecia cinzenta a primeira manhã de janeiro. Lerda e triste como o despertar do médico, às pressas e assustado com o alarido de gente na sua porta. Levaram-no ao Hospital antes de tomar café. Nunca vira aquilo em mais de 40 anos de profissão naquele lugar: o necrotério tomado por três corpos. Um velho amigo, a neta deste e um rapaz que não conhecia jaziam e inertes e sem vidas. Só à noite, quando conseguiu retornar para casa, entenderia a relação que unia aquela tragédia. Era o raiar de 2001. Um dia para sempre e nunca mais. Eis que, desde o início, percebe o leitor que terá que trabalhar a leitura paciente, a despeito da curiosidade, pois o subcapítulo 2, que sucede a esta última reflexão sobre a importância deste dia e deste acontecimento, em final de 2000, remete, num primeiro salto, para quase vinte anos depois. A narrativa não será de rememoração apenas, mas haverá um presente em que a história se desdobra, se explica, e traduz circunstâncias que envolvem personagens ditas por um narrador que abandona a terceira pessoa inicial, para assumir um eu intenso, sujeito de uma juventude desenfreada no interior –“Nós éramos anarquistas e libertários sem saber exatamente do que se tratava. A paixão da noite vivia em nossas vidas em dulcíssima libertinagem […]” (p.28). Nesta cidade, para a qual, depois de se afastar por anos em nova vida em Salvador, ansiava voltar, finda a maior aventura de sua vida apaixonada: Pedro Boaventura e Camila Cordeiro casaram-se 1983. Ela tinha 18 anos; ele 21 e nenhum dinheiro. Conheceram-se um ano antes e se separaram 10 anos depois. Foi uma relação longa, mas jamais se conheceram. Posso afirmar isso com segurança, pois, como você sabe, Pedro sou eu. Salvador na Bahia era onde vivíamos, mas todo meu espírito havia ficado acerca de 500 km dali, em Itapuy e suas cercanias (p.33). Portanto, passada a crise da dor que o abandono e a separação provocaram, podia voltar: […] anseio com a subida da serra do Adeus, o caminho do Macuco, os mergulhos no rio Colônia e a vida sem fim, como uma fiel promessa […] enquanto o tempo passa, escorrem em mim, como uma lágrima recorrente, a dúvida da derrota e do fracasso e a certeza necessária de recomeçar, reinventar, retomar, reconquistar a vida que se deseja (p.12). Nesta cidade, que se anuncia no Prólogo, como o lugar imaginário de uma promessa, está o labirinto, os bárbaros em sua tresloucada juventude libertária, os bastardos. Mas está, sobretudo, esse narrador-personagem eterno sonhador: Já te disseram que a vida não é um projeto? Até os vinte anos você pensa que tudo vai dar certo. Dos vinte aos quarenta, acha que alguma coisa vai dar certo. Porém, depois dos quarenta, é quase certo que nada vai dar certo. Mas, é necessário acreditar no sossego do tempo, de que as coisas vão se acomodar com serenidade. É tristemente necessário acreditar (p.22). Nas idas e vindas do desconcerto da vida de Pedro com Camila havia outras figuras que compõem o quadro rumo à tragédia final. Guadalupe foi uma importante mulher nessa missão. “Pois é, o mundo girou e eu rodei. Rodei como uma biruta e retornei ao ponto de partida. E Guadalupe estava lá” (p.44). Mas as voltas desta biruta e, com elas, as voltas das vidas dos habitantes da pequena cidade são descritas com precisão e economia, sempre entremeadas pelo comentário sobre a vida nacional, a política e o futebol e sobre as coisas da vida em geral. Copérnico, Darwin e Marx, quando os conheci ainda um adolescente inseguro, me reduziram a pó. A terra não é o centro do universo, o homem não foi criado por Deus e não existe propriedade privada. Como e por que me disseram estas coisas tão terríveis? Platitudes para mim e para você, depois de tudo que lemos, mas, a despeito da obviedade, ainda hoje não me recuperei totalmente. E, por fim, veio Freud afirmar que agimos mais pelo inconsciente. O mundo era precário e frágil, descobri (p.22). As coisas e as mulheres iam e vinham na vida de Pedro, assim como os quadros que pintou, na antiga vida de pintor ao lado de Camila, e que abandonara em Salvador, voltaram para as mãos dele, por meio do amante da mulher que o abandonara, o professor de Literatura Inglesa, que depois de tantas, foi trabalha nos correios. Afinal seus quadros valiam muito, a filha deste homem, curadora de arte, queria adquirir o lote a bom preço. Ele, Pedro, voltando à esbórnia: “Resta dizer, só pra consta que logo voltei à loucura dos dias de juventude, do sexo como redenção e fuga, álcool e drogas” (p.55). Esbarrava sempre em Guadelupe de quem nunca se afastara entre transas, mulheres, farras e bebedeiras, além de algumas mortes acidentais. Pediram que eu entrasse, Guadalupe estava nos fundos.[…] Abriu o mesmo sorriso da nossa juventude e caminhou na minha direção[…]Eu conhecia bem o lugar, durante a adolescência era minha outra casa. Agora, adulto, retorna com as mesmas intenções. Havia cansado da vida mundana e profana que levava, precisava de um consolo e um repouso e, em verdade, nunca deixei de amá-la. Para sempre ela foi minha namorada, mesmo quando não estivemos juntos. Hoje entendo bem isso, mas agora já não importa mais (p.63-4). Tudo se dava no círculo das amizades e desavenças das famílias mais antigas e inimigas as quais o personagem frequentava, os Correia (duas irmãs Maria Elisa, a mais velha, morena, Maria Elena, a segunda, branca, mais reservada, filhas de primeiro casamento; e Maria Luíza, filha de D. Neném, com o mesmo dr. Clemente) e os Alvarez (Dr. João, Advogado, o amigo Tonhão e Guadalupe), mas as intricadas relações que os uniam e ou separavam formam o enredo destes nove capítulos e suas subpartes. A um novo morador que pedisse referências da cidade, poderiam dizer: “Chegando por lá, procure o advogado João Alvarez e o fazendeiro Clemente Correia. Cuidado. Não entre nas farras do doutor, nem mexa com as filhas do coronel” (p.36). Um mundo reduzido, mas que dá margem a ser um microcosmo das relações humanas. “A vida dribla a gente com a ginga de um craque de futebol. Engana, finge, oferece, dá e toma” (p.90). No velório das três mortes que abrem o livro, nos capítulos em que se narram os detalhes das histórias de desejos e sonhos ocultos e ocultados, sabe-se, por exemplo, que o velho Clemente, o fazendeiro que morre junto com a neta e seu pretendente, que já tivera duas esposas e muitas amantes, só tivera realmente um grande amor: D. Soledad, avó de Guadelupe. A revelação é belíssima: […] mansa e silenciosa atravessou a sala apinhada de curiosos, sem cumprimentar ninguém, apoiada na neta Guadalupe, aproximou-se do caixão, acariciou o rosto do falecido e disse baixinho, quase sussurrando: “Depois de 65 anos eu retorno a esta sala e encontro o mesmo menino, agora menos assustado, para dizer: eu te amei a vida inteira e espero, em breve, viver toda a eternidade ao seu lado. Calma, eu já estou indo”. Voltou para casa, trancou-se no quarto e, sem dizer mais uma palavra, morreu 10 dias depois (p.78). Acontece que mesmo Clemente a amante e uma professora (Benta) com quem teve um filho, que nunca reconheceu, na época conhecido, de nome Bento, e pelo apelido Apocalipse. Pois não é que a neta de Clemente se apaixona pelo rapaz? Ela ouve do avô a frase inócua, pois sem explicação plausível: “Só vou falar uma vez: eu a proíbo de qualquer relação com esse rapaz”(p.90). Explica o narrador, para não haver dúvida: “Apocalipse era filho adulterino de Clemente com a professora Benta, portanto, tio de Maria Antonia” [que era neta de Clemente](p.93). […] Depois daquele dia, todos da família que conheciam os fatos começaram a trabalhar para impedir o relacionamento”… Mas nada adiantou. No capítulo oitavo é contada em detalhes a história de Apocalipse e dos preparativos do réveillon do ano 2000, em que se resolve modo tão trágico mais um romance sem futuro naquele mundo circular. Se o mundo em Itapuy rodava em torno dessas pessoas, também foi se desfazendo com o passar dos anos, mas não sem deixar um gosto amargo de coisas mal resolvidas, de histórias mal contadas, de pessoas entristecidas. [Do Epílogo) Não há uma só noite, tendo como travesseiro as lembranças daquela época, que não me lastime por aquelas pessoas. Erráticas, querendo acertar; bonitas, vivendo a feiura; sendo o que não são; aceitando que não desejam; buscando o que não encontram. A vida inteira dando voltas num círculo eterno; uma fila para o nada; seres coisas e bichos encurralados no inexplicável absoluto: esse angustiante tempo que nos é oferecido sobre a terra e o inestimável tributo perpetuamente exigido, apenas para chegar ao incontornável e abjeto final (p.128). A última flor da terra O segundo A última flor da terra é “sobre a paixão e outras vésperas da morte”. Traz um prólogo e um epílogo na extremidade de dois Livros. O Livro Um: Caderno de notas do rascunho da vida, seguido de Livro Dois: Caderneta do fiado com Deus. O detalhe é que todos são datados entre parênteses: para os Livros (1967-1992); (1993-2015), nas quais se percebe em detalhe, a ironia na duração do Prólogo (!16 d.C. – 2016) e o Epílogo (2015-2016). Então, chama logo atenção, para quem acabou de ler sobre o ciúme e outros bastardos triunfantes, que neste também haverá muita paixão desvairada ou amor desencontrado, provocando-se em regiões próximas da morte. Aí se localizam os pontos de contato a aproximar os dois primeiros romances da trilogia. E também no nome da cidadezinha: Itapuy. Identifica-se o parentesco imediato, ao se ler o encontro mágico com o alvo da paixão do narrador, outro Pedro. “Eu sou Pedro”, ele disse; “Eu sei, ela respondeu. Era 1982, ele estudava direito e ela era Doutora em Teoria Literária. Mais de vinte anos os separavam na idade” (p.144). Aqui penso que haverá menos interferência das vidas de família, já que o romance deverá ser secreto. Combinaram de se encontrar na fazenda dela. O enredo segue: ela na vida familiar entre marido e filhos. Ele, na esbórnia da juventude em cidade pequena, frequentando mulheres e o bar Distopia. Mas há, entre os dois romances, uma mudança de lente: se no primeiro as lentes ampliam o foco para o tempo, a cidade, a fundação e a participação social e política, neste, ainda que se situe bem numa época, e num espaço a lente é mais fotográfica, trabalha no máximo em plano americano ou em zoom, buscando a intimidade, em muitas cenas criando a ilusão de que se fotografa a alma. Na casa da fazenda, seguiram sem desvios ao quarto. Pedro a despiu cuidado, admirando cada nuança revelada do corpo viçoso daquela mulher. Estavam apenas no segundo encontro e aí ainda havia muitas descobertas a serem feitas. Com mimos e regalos, fizeram um amor vigoroso eterno. Serenamente, ao possuí-la por trás, ele novamente impressionou-se com as três pintas escuras no alto da nádega direita que a direita, beijou-as suavemente e resolveu nomeá-las: “vou chamar essas suas marcas de Caravelas em homenagem às de Colombo: La Pinta, La Niña e Santa Maria”. Ela sorriu assentindo e ele completou: “depois você vai tatuar uma Nau com a cruz-de-malta na vela, bem aqui embaixo dos sinais agora como tributo ao meu Vasco da Gama”[…](p.156). O conflito interno se instalava na alma de Ana Maria, de formação católica, remoía-lhe o remorso pela vida dupla. Além do quê, começou a cobrar dele os excessos de festas, álcool e mulheres, no bar e em casa das amigas. Ele acabou resolvendo dar um tempo em Salvador para estudar. Despediu-se de Rafisa, depois de uma cena terrível em que ela, bêbada, tomada pelo desejo e pelo ciúme, avançou sobre ele, machucando-o. Separaram-se para sempre. Mas na despedida há uma bela cena em que a letra da música de Gal forjou um diálogo de despedida, que realmente só ocorreu no imaginário: Alguém trouxe uma toalha e ele começou a limpar-se, depois se levantou e saiu o silenciosamente, porém, antes de alcançar a porta ainda ouviu Rafisa pela última vez: estou tão cansada e triste, mas não para dizer que eu não acredito mais em você. Ele pensou em responder com a mesma letra da canção Vapor Barato, quis falar: Oh! minha Honey Baby! Estou indo embora, talvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe, mas eu preciso, eu preciso esquecê-la. Mas não disse nada, não falou que poderia ter dito para Rafisa naquela triste despedida: que a respeitava e admirava, que ela era uma grande garota, porém, pelo imponderável da vida, naqueles dias, e para sempre, ele amava outra, também admirável e enorme mulher. Todavia as palavras não foram expressadas e tudo terminou com as coisas soltas pelo meio do caminho, restos de emoções contidas, o gosto amargo que permanece a causar náusea eternamente (p.171-2). O amor mesmo, havia encontrado em um acaso, ou não… A vida é o outro na relação com a sociedade ou na perdição do amor a vida será sempre o encontro com o outro minha epifania pessoal a aparição do essencial em minha vida ocorreu numa tarde de 1982 caminhando num bosque quando encontrei Ana Maria ou ela me encontrou pois hoje acho que aquele encontro não foi tão fortuito ocasional às vezes me toma dominado pela certeza de que Ana Maria conhecendo nossa história ancestral forjou aquele encontro de forma deliberada para provocar nossa aproximação (p.230). Mas este amor quase o levara à perdição. Foi na primavera de 1992 naquele final de semana prolongado com feriado na segunda-feira depois de muito álcool e muito sexo adormecemos extasiados latidos do cachorro e gritos dentro do quarto nos acordaram assustados na madrugada era o marido dela com uma arma na mão bêbado e transtornado de ódio e ela reagindo com xingamentos como eu nunca vira antes uma discussão ele atirou ela caiu ensanguentada eu me ataquei com ele e rolamos no chão o revólver ele escapuliu da mão dele e correu no assoalho na direção dela ela gritava sai sai afasta eu me desviencei dele rolei no chão em direção ao banheiro ouvi outro tiro ela estava de pé com 38 na mão e ele morto estendido no chão você está bem você está bem ela me perguntava eu não respondi nada ela havia acertado de raspão para ele havia acertado de raspão o braço dela mas ela fulminou com um tiro no peito abraçamos e sentamos na cama o dia estava amanhecendo quando ela acalma racional Lúcia de lógica colocou a arma ao lado do corpo do marido o corpo o quarto lavado de sangue me deu outro abraço e falou vai embora vou ligar para o delegado ele é seu amigo não é depois de descer os degraus da varanda no meio do jardim da entrada eu olhei para trás e apenas nesse momento percebi que ela estava completamente nua foi a última vez que a vi com vida Em busca de Julio Packard E o terceiro livro da, Em busca de Julio Packard como subtítulo (sobre o amor e outras crueldades da vida) evidencia, nas três Partes que o constituem, ser um livro escrito por um amante da literatura, como aliás aponta em recursos de intertextualidade em diversas passagens, ser um livro de leitor, um leitor que parafraseia Proust e sua longa busca pelo tempo perdido, não sem ironicamente montar um Em busca de Julio Packard4: a Parte 1 é No caminho de Chacarita, não de Swann; a Parte 2, À sombra da aceroleira em flor, não das Raparigas… mas as referências não podem ser mais explícitas a Em busca do tempo perdido… numa paráfrase pós-moderna que abala a seriedade do original. A trama não é complexa, mas bastante imaginativa: ao encontrar a referência a um poeta na dedicatória de um livro de Pablo Neruda, o personagem, que precisava dar um novo rumo à sua vida, toma uma decisão. Já era quase um idoso quando vivi minha crise existencial. Com 55 anos morava em Ilhéus, no sul da Bahia entre o mar e a mata, suportando um carregamento intolerável de arrependimentos e remorsos encurralado pelos sentidos, vencido pela ética da escola, humilhado pela moral da igreja e convencido de que já não havia mais nenhuma porta, tomei um táxi para o aeroporto Jorge Amado, no Pontal, entrei num avião e amanheci no outro dia em Buenos Aires, onde encontrei um poeta perdido no tempo, uma nova corrente filosófica para o sentido da vida e, talvez, – provavelmente esteja errado – voltei, meses depois, remoçado e pronto para atravessar os dias terríveis que sempre se colocam no caminho de todos nós, até a hora marcada para pegar a barca de Caronte, filho de Nix e de Érebo, e fazer a travessia final (p.245). […] Então comecei a minha vida sacra em busca de Julio Pakard (p.256) As emoções da busca resultam em vitorioso encontro “como quando você tem certeza que encontrou o que procurava e não quer perder nunca mais; foi um dia para sempre” (p. 362). O passado fora recomposto. Final As emoções e sentimentos que subintitulam os livros indicam outro modo de ler os três livros em paralelismo: ciúme, paixão e amor, sentimentos fortes que encontram modos de se manifestar diferenciados no tempo e no espaço das três histórias. Os enredos são ricos e emaranhados em um ir e vir de fios, de tal modo a suscitar perguntas, ao longo da trama, que vão sendo respondidas à medida que se progride na leitura e, simultaneamente, se retrocede no tempo da história. O ficcionista nos conduz por seus Labirintos, evidenciando tratar-se de uma obra tripartida, mas regida pela condução do tempo. Um guia condutor é o fio do tempo, que o narrador não solta, em nenhuma das histórias, um fio que vai prendendo à margem das narrativas, com datas fundamentais, eventos inesquecíveis a nível nacional, como o tempo das Diretas Já, por exemplo, facilitações para que se retenham sequências ficcionais na memória de quem lê: a marcação das datas acompanha a escrita, se você se perde, pode voltar no tempo; e também no espaço, sua dupla inseparável. Esse recurso ao controle da temporalidade é comum às três narrativas, e se torna mais ou menos persistente, a depender da complexidade do enredo. Outro aspecto curioso e instigante na leitura são as constantes referências à Literatura. Às vezes a personagem está com livro na mão, e o usa no diálogo, como o O Alef, de Borges; “se você terminar de ler esse livro algum, então será outra pessoa, nesse dia […] entenderá todo labirinto em que me meti e por que me nego ao que desejo”. Era O Alef, de Borges”(p.75).Outras vezes são os autores que vem, como o Neruda, no terceiro romance; outras, apenas uma frase traz a lembrança da leitura, como em “Começava o inverno da nossa existência, uma alusão ao verso de Shakespeare em Ricardo III. Essa caça ao tesouro pode ser uma diversão fascinante, um bônus que a obra oferece a seu leitor. No último romance a intertextualidade é mais estrutural, vem da lembrança de modos de narrar de autores argentinos, como Borges ou Bioy Casares. Sem falar no próprio ambiente em que se passa a história a Buenos Aires desses autores. Mais um aspecto pode-se comentar em relação ao processo de singularização usado por Adroaldo Almeida: como se vê em Chklovski, o paralelismo é um desses modos, para acentuar aspectos as vezes despercebidos, pela insistência com que são evidenciados. Nas duas primeiras histórias isso ocorre no nível do enredo, com o esforço de lutar contra o destino. Ainda se pode dizer que uma proposta literária como esta é exemplar para o que Roland Barthes chama de “ler levantando a cabeça” no ensaio que, muito oportunamente se chama Escrever a leitura. Não é isso mesmo? Tenho pudor de emprestar livro que eu tenha apreciado muito, porque fica todo escrito por mim, nas contracapas brancas, nas folhas de guarda, que às vezes vem a mais. Ah! Como é bom, tempos depois, voltar a esses livros e ter lá toda a “cola” das leituras anteriores. Obrigada, Adroaldo Almeida.Ana Maria de Bulhões-Carvalho é professora Titular aposentada do Departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) (Jan.1992-Set.2021). Formada em Literatura Comparada pela UFRJ, fez Doutorado na mesma universidade e pós-doutorado na Letras da PUC-RJ. Pesquisou Literatura e Teatro contemporâneos, com publicações nas duas áreas. Foi responsável pela editoria de O percevejo Revista de Crítica e pesquisa em Artes Cênicas, na forma impressa e depois virtual (1993-2018). Foi Pró-Reitora de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Universidade da UNIRIO entre 2000 e 2004. Nesta Universidade foi ainda Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênica durante diversos períodos, como também foi Chefe do Departamento de Teoria do Teatro. Foi Bolsista do Nosso Estado pela Faperj e Pesquisadora do CNPq.