A corrupção da população de toda uma cidade supostamente incorruptível é tema recorrente na literatura e já apareceu sob várias formas em diversos países. Autores como o estadunidense Mark Twain (1835–1910), o brasileiro Lima Barreto (1881–1922), e o suiço Friedrich Dürrenmatt (1921–1990) abordaram este tema de modo bastante criativo.
O homem que corrompeu Hadleyburg
Mas na boa Literatura, em poesia ou em prosa, esses elementos tornam singular, particular, um modo de trabalhar a linguagem de modo a afastar os objetos do comum, as ações, do corriqueiro, trazendo estranheza à própria linguagem literária. Essa estranheza constitui a singularização do discurso de cada escritor, em determinado texto, despertando uma particularidade da escrita de criação batizada pelo velho conceito russo de “ostranenie” criado pelo teórico russo Viktor Chklóvski (1893-1984), em texto de 1917 que ficou famoso, “A arte como procedimento”.1 Nele, o pensador, considerando não só a produção criativa, mas seu efeito no receptor, leitor ou espectador. Ressalta um importante princípio pertinente à natureza da apreciação da obra de arte: o “ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que já é ‘passado’ não importa para a arte” (1978, p.45). O procedimento, mencionado no título do trabalho, é aquele que faz com que o que está dito traga a surpresa do olhar inaugural sobre o que se vê, ainda que o que se vê seja algo conhecido, como um amanhecer, por exemplo. O estranhamento (“ostranenie”) de que fala Chklovski é a sensação, produzida no leitor, de que aquilo que lê o toca como se fosse uma descoberta nova. Se o texto provoca este efeito de tornar estranho (novo) o que é familiar, então o escritor conseguiu criar uma ‘singularização’: renovado, o objeto foi singularizado, os elementos da composição do texto conseguiram abalar a natureza do que foi dito, tornando tudo inaugural, seja enredo, personagens ou ambiente. Se aconteceu o processo, o leitor percebe que lidou com um obscurecimento da forma e lidou com a “dificuldade e [a] duração da percepção” (Chklovski, 1978, p. 45).
Trilogia curta da vida breve
Em 1899, Mark Twain explorou a falibilidade humana e os perigos da tentação no conto “O homem que corrompeu Hadleyburg”. Nesta história, Twain destila toda sua ironia ao apropriar-se de um trecho da oração O Pai Nosso para atacar a pretensa incorruptibilidade humana. A população de Hadleyburg ao longo dos anos havia ganhado reputação de incorruptibilidade e se esforça para evitar a tentação e manter-se imaculada, chegando, até mesmo, a doutrinar suas crianças desde cedo. Um forasteiro que havia sido ofendido nesta cidade busca vingança contra sua população e passa a tentá-la com uma recompensa em moedas de ouro por um (falso) ato de bondade supostamente esquecido. Depois de receberem dicas anônimas por ele fornecidas, dezenove das vinte famílias mais proeminentes da cidade reivindicam a recompensa sob falsos pretextos, mas tornando públicas suas mentiras facilmente comprovadas. A desonestidade dessas pessoas supostamente honestas vem à tona numa reunião aberta e eles são publicamente desmascarados, fazendo com que o lema da cidade mude de “Não nos deixeis cair em tentação” para “Deixai-nos cair em tentação”.
A nova California, de Lima Barreto
Tema semelhante de corrupção de uma cidade envolvendo um forasteiro (mas sem estar ligado a uma vingança) também aparece no conto “A nova Califórnia”, de Lima Barreto. Escrito em 10 de novembro de 1910, foi originalmente publicado em 1911 e depois republicado em 1915 como apêndice do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma. O conto foi adaptado para o cinema em 1957 por Carlos Alberto de Souza e César Memolo Jr com o título Osso, amor e papagaios e também para a novela de televisão Fera ferida (1993). A história tem como cenário a pequena cidade fictícia Tubiacanga, no interior do Rio de Janeiro. O forasteiro Raimundo Flamel chega ao local e se torna objeto de curiosidade da cidade por ser uma pessoa reclusa. Logo, o médico e farmacêutico local descobre sua fama de químico conhecido internacionalmente. Um dia, Flamel visita o médico e revela a descoberta de um processo que transforma ossos em ouro e o convida a ir a sua casa com mais duas pessoas proeminentes da cidade para revelar o seu achado. Após o encontro, o forasteiro desaparece misteriosamente e os túmulos do cemitério local passam a ser saqueados. A população monta guarda e descobre os infratores. Ao descobrirem a causa, toda a população da cidade passa a retirar os ossos dos corpos do cemitério na esperança de enriquecer com o suposto processo de transmutação. Quando os ossos dos mortos se esgotam, os habitantes de Tubiacanga começam a se matar uns aos outros.
A Visita da Velha Senhora
O dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921–1990) retoma o tema em 1956 na sua famosa tragicomédia A Visita da Velha Senhora que se tornou obra-prima da dramaturgia mundial, com diversas adaptações para filme, série e ópera pelo mundo afora. A princípio, Dürrenmatt havia concebido o texto como um conto que se passava nos Estados Unidos e se intitulava “Eclipse Lunar”. Neste enredo inicial, um antigo morador da aldeia, agora rico, pagava os aldeões para eliminarem seu velho rival. Em 1958, a peça de Dürrenmatt passou pela Broadway e até hoje percorre o mundo e diversas cidades brasileiras. Uma recente montagem trazida pela primeira vez a Salvador pelo brilhante diretor Gil Vicente Tavares, com dramaturgia de Cleise Mendes, ainda se encontra em cartaz até o final de setembro. A peça narra o retorno da viúva bilionária Claire Zachanassian ao seu vilarejo natal, chamado Barro Mole (Güllen, no original, palavra alemã que significa estrume líquido, chorume). Ao chegar à cidade, cujos moradores se consideram incorruptíveis e a veem como a salvação de sua miséria, ela é recebida calorosamente e de forma interesseira pelos eminentes representantes da sociedade (o prefeito, o chefe da polícia, o professor, o sacerdote e o seu antigo namorado Alfred). Após desconstruir o bajulador discurso de recepção do prefeito, Claire afirma que o mundo fez dela uma mulher da vida e ela quer fazer dele um bordel. Em seguida, faz uma oferta indecente à população aparentemente imaculada: todos ganhariam uma enorme quantia, mas somente após assassinar Alfred como vingança pelas atrocidades por ele cometidas contra ela. Após engravidá-la, ele a abandonou à sua sorte, negando a paternidade da criança que ela estava gestando e contratou duas pessoas para dizerem que haviam tido relações com ela e comprado a sentença de um juiz a seu favor. Os moradores inicialmente rejeitam a proposta, mas a perspectiva de riqueza é por demais tentadora e a resistência à proposta imoral vai desaparecendo ao tempo em que os representantes da moralidade local vão revelando seu lado tenebroso e egoísta e os frágeis escrúpulos morais vão desaparecendo. Os habitantes acabam cedendo à tentação e, em assembleia, decidem executar Alfred.
O texto teatral e suas adaptações
A peça estreou em Zurique em 1956 e, neste mesmo ano, foi adaptada para o público britânico por Maurice Valency e dirigida em Londres por Peter Brooke. Após um tour pelo Reino Unido, foi levada aos palcos da Broadway. O texto dramático possui algumas adaptações cinematográficas. Sua primeira versão filmada em língua alemã é de 1959. Em 1964, foi produzida uma versão da obra em Hollywood, estrelando Ingrid Bergman como Zachanassian e Anthony Quinn como Alfred. Foi adaptada pelo próprio autor para um libreto de ópera e musicada pelo compositor Gottfried von Einem, e estreou em 1971. Em 1976, foi adaptada para a Televisão Nacional Libanesa e dirigida por Antoine Remi, tornando o autor conhecido do público árabe. Em 1989, surgiu a versão fílmica russa em duas partes, dirigida por Mikhail Kozakov. Em 1992, a versão fílmica senegalesa entrou para o Festival de Cannes como uma alegoria do neocolonialismo, dirigida por Djibril Diop. Em 1995, uma versão com Lauren Bacall e Joss Ackland participou do Festival de Artes Chichester. Em 1996, sob direção de Jorge Polaco, surge a versão argentina que obteve o Prêmio Especial do Júri do Festival de Filme Internacional Amiens. Uma adaptação musical de John Kander, Fred Ebb e Terence McNally, dirigida por Frank Galati, estreou em Chicago em 2001, depois revisada em 2008 e apresentada em Arlington, Virgínia. Em 2015, John Doyle dirigiu outra versão levada à Broadway por Roger Rees e Rivera. Tony Kushner escreveu outra adaptação em inglês, levada ao National Theatre de Londres em 2020, com direção de Jeremy Herrin, mudando o cenário de Güllen para a fictícia Slurry, em Nova York. No Irã, Hamid Samandarian traduziu o script para o persa, trazendo-a ao teatro e em seguida Hadi Hejazifar transformou-a num musical. Em 2021, Mohsen Gharaie fez o premiado filme iraniano (Without Everything) baseado na peça.
A fragilidade da alma humana
Todos estes textos tratam da hipocrisia humana e da fragilidade de nosso caráter e de nossas certezas. Eles nos confrontam com questões éticas e provocam inquietações e perguntas sobre o que faríamos se nos encontrássemos nas situações propostas por estes escritores. A sua leitura (ou a experiência de assistir às suas adaptações teatrais, musicais ou cinematográficas) ajuda-nos a compreender aquilo que se esconde no mais recôndito de nossa alma. Eles nos mostram que as fronteiras entre a decência do comportamento humano e o obscuro desejo de poder e riqueza são bastante frágeis e facilmente corrompíveis e nos revelam que o senso de ética, honestidade e moralidade é facilmente desconstruído pela tentação, a depender da situação e da necessidade.
Décio Torres Cruz é Membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de A poesia da matemática (2024), Histórias roubadas (2022) e Paisagens interiores (2021).