“Quando nossos poetas vão cair na vida? Deixar de ser broxas pra serem bruxos?”
Começo deixando claro que esta resenha não é um guia de leitura nem uma forma-fórmula didática para entender os poemas do livro. A resenha, aqui, não objetiva ser um pré-fácil. Pelo contrário. Entender um poema é o que não busco. Minha luta é sentir a poesia. E, partindo do pressuposto de que “toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação” — primeira das três conclusões fundamentais de Umberto Eco na introdução à segunda edição de Obra aberta —, deixo minhas impressões como poeta e leitor que sou, mas sem cair no relativismo que muitos se apoiam como forma de justificar suas insensibilidades. As palavras de Roberto Piva, utilizadas nesta resenha como epígrafe, na verdade, não passam de provocação. Servem para nortear a minha imersão n’O eco ardil, de Daniel Veras Pinheiro, que chega aos meus sentidos como um canto gregoriano que “ilumina até o fundo das almas”. Um canto de bruxo, pois os broxas insistem em cantar os modismos de sempre; os modismos de revoltas gratuitas e partidários panfletos apologéticos. Coisa horrível, onde a beleza passa distante e sem avisar. Como diz Alexei Bueno: “Quando poesia dá pra ser ruim, é a pior coisa do mundo.” Enfim… Voltemos à poética de Daniel, poética de tom prosaico, insubmissa a toda essa “verborreia” superficial fria e natimorta. Poética que trabalha a liberdade do verso como o improviso no jazz, sem perder o rigor estético. Poética que é guiada pelo fluxo primal do (in)consciente. A poética de O eco ardil me encantou feito canto de sereia por, especialmente, quebrar a espera da previsibilidade; poética que não se limita/limitou/milita/militou aos “ismos” (da grande parte) da poesia que é produzida atualmente, pelo menos o que tenho observado. Obra de estreia do Poeta Daniel Veras Pinheiro, não por acaso, foi agraciada com o Prêmio Cidade de Teresina edição 2013, categoria Poesia do Concurso Literário Novos Autores, promovido pela Prefeitura Municipal de Teresina, Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, e que, merecidamente, é reeditada em 2022 pela Caravana Grupo Editorial. É um livro forte, pulsante, capaz de abrir o próprio caminho nesse cenário literário torto repleto de poemas, mas carente de poesia. Um livro que me atrevo chamar de soturno, sem pieguismos, de uma visceralidade capaz de tirar o fôlego “pra avaliação interior”. Li, reli e releio o livro degustando cada palavra, verso, estrofe e entrelinhas, saboreando o noturno cenário embutido em cada poema — mesmo os poemas que aparecem o sol são noturnos —, que insistem em me provocar feito cantigas de maldizer. O eu lírico de O eco ardil, que se confunde com o poeta, é um ermitão comovido com a existência e que, em profunda meditação e reflexão, após contemplar o metafísico da vida, mergulha nas sensações fenomenológicas do livre arbítrio. A alma “comovida” do poeta, como vida, não se dissocia da vida, ou seja, espírito e carne unidos “são só uma herança do infinito: poeira de estrelas inseridas no ciclo da vida de ciclos imensuráveis.” Impossível sair ileso ao ler O eco ardil. Por experiência própria — não me perdoem as aliterações —, confesso sem nenhum pudor, o livro de 28 poemas (ou 28 ecos ardis) carregados de símbolos e perspectivas, me deixou um sabor tatuado no paladar do corpo: amargo necessário; doce na dose certa; salgado ao sol; azedo preciso. Vertigens à flor do âmago, que transbordam dos poros das palavras. Delírio e deleite “diante da incompreensão deste rutilante enigma (Tempo) que ilude tudo o que é vida”. Daniel Veras Pinheiro nos carboniza com o seu O eco ardil; talvez incompreendida pelos desavisados, “pois a distinta matéria nunca a compreenderá”. Ou “entenda como quiser”. O infinito trafega livremente pelos poemas. A dicção peculiar na poética de Daniel nos leva a crer que sua poesia é materializada através de lampejos e surtos brotados de insônias e sonhos, “sonhando acordado num avarandado que dá para a rua principal”. Terrenos opostos, mas que combinam muito bem quando alimentados “das reflexões profundas”. O existencialismo que habita O eco ardil nos mostra com clareza que a vida é o instante; o sopro exaustivamente cantado pelo poeta, que nos chega baixinho aos ouvidos, “Tire lições da paisagem vista da tua janela”. Tais palavras nos atingem em eco. Um desautomatizante soco no estômago do perceber-se no existir. E o poeta continua com seu canto convertido em aviso prévio, num tom p(r)o(f)ético: “Eu vi claramente a noite se transformar num dia”. E sem arrodeios, bate o martelo nietzscheano aos olhos cansados dos sempre desavisados: “O mundo passou diante de teus olhos compenetrados”. Sentir a existência requer, num sentido gullariano, traduzir-se. O emotivo que impulsiona e move os elementos do mundo, recriando-os ou, profundamente, inventando-os através da harmônica linguagem que enraíza e propaga os sentimentos e sentidos poéticos aos espíritos sedentos de “navegar rios distintos”. Um detalhe que considero muito importante em poesia, mas que muitos poetas não têm se preocupado, refere-se à imagem poética. Percorrendo a trilha “errante” de O eco ardil, observei as belas e instigantes imagens que o livro nos apresenta, a começar pelo título da obra. A simplicidade, a síntese e o incisivo que uma imagem apresenta, além de embelezar o que se evoca, carrega em si o movimento da vida. Esse tipo de imagem está presente na poética de Daniel, onde “invade meu corpo feito gripe”. Imagens que reproduzem “o amor urgente pelas coisas mais simples” em comunhão com “a complexidade na síntese da beleza com conteúdo”. Daniel vai mais além ao pintar um cenário ancestral, visto que a imagem, como uma das estilizações, também expõe a individualidade do poeta, quando o mesmo afirma nos poemas É Apenas um sopro e Minha visita corrosiva, respectivamente: “Os traços de família que carrego há tanto” e “Mas do berço entranhado em minhas vísceras / Nunca me esquecerei”. Esses versos me remetem imediatamente às palavras de Noemi Jaffe quando diz que “Não são as palavras que guiam as ideias. São as ideias que guiam as palavras”. O timbre verbal em O eco ardil é um dos instrumentos do poeta aliado ao estranhamento, que considero essencial numa obra poética. Sobre o timbre verbal, como Manuel Bandeira bem disse: “… Não é que o sentido das palavras não importe. Importa; mas não independentemente da sonoridade”. A instintividade do poeta está expressa em cada gesto-palavra, com êxito, nesta legítima obra artística. Parafraseando Pio Vargas, concluo esta resenha sem finalizá-la. Os silêncios e gritos de O eco ardil me causaram alumbramentos absurdos. Sempre terei algo a dizer e sentir sobre os 28 poemas deste livro “que o divagar dentro de uma viagem vale mais do que qualquer despedida ou chegada”.
Francisco Gomes vive em Teresina, PI. É poeta e músico, graduando em Letras – Língua portuguesa (Bacharelado). É autor dos livros Um outro universo ou tonal, O despertar selvagem do azul cavalo domesticado, Face a face ao combate de dentro, Aos ossos do ofício o ócio e Poemas cuaze sobre poezias. Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita.