Um presente para sempre

O ano, mesmo, eu não lembro não. Nem minha idade, direito. Devia estar no segundo primário. Ou terceiro. Por causa do bilhete.

O pai ia viajar. Então, mais que depressa, escrevi ao Geraldo Marcos e José Tarcísio perguntando se dava pra me mandar um casal de pombos, que eu queria começar minha criação. Podiam aproveitar o caminhão do leite, era mais fácil.

Pedi cuidado na hora de escolher, pra não virem dois machos. Ou duas fêmeas. Senão, gorava meu plano. A Mônica trabalhava na cooperativa, bateu o bilhete, direitinho. Até botou “Urgente”, em vermelho, e ainda grifou.

Na tia Mandica tinha um pássaro preto criado na mão. Andava pela casa toda, completamente sem medo. De gato ou de gente. Pousava no rabo do fogão, na mesona da cozinha, no ombro de um, na cabeça de outro, o pessoal às vezes até perdia a paciência. Mas era mansinho assim porque foi criado ali, acostumado com todo mundo.

Como se tia Mandica fosse a mãe, tio Josias o pai, os meninos fazendo parte da família dele. Eu queria um pombo criado igual o pass’o preto, desde pequenininho. Aí ele acostumava, ficava meu amigo. Então não tinha dúvida. Por isso a ideia do bilhete.

Nessa época o pai não dirigia mais o caminhão, já tinha posto motorista. Mas fiscalizava, preparava as encomendas, olhava tudo, tintim por tintim. Vivia atualizando a caderneta onde anotava o valor dos fornecimentos – ração, remédio, inseticida, vacina, até cigarro e pão – pra acertar no fim do mês, quando a Nestlé pagasse.

A linha de leite (ou só “a linha”, como a gente usava falar) foi o principal serviço dele durante muitos anos. Folga, só uma vez por ano, na Sexta-feira da Paixão. Nesse dia, antigamente, o pessoal da roça não fazia nada. Muitos nem pentear o cabelo, penteavam. Falavam baixinho, pisavam de leve, era proibido correr ou gritar. Os adultos jejuavam.

Quando o relógio da parede batia três horas, minha avó falava, dum jeito muito respeitoso e com ar de grande pena:

“Tão crucificando Nosso Senhor”. Às vezes o tempo fechava, sinal de que a natureza estava triste.

Nas fazendas, ninguém ia fazer queijo, requeijão, desnatar, essas coisas, era pecado. Nem jogar fora ou dar pros porcos, mais pecado ainda. Aí, muita gente saía buscando leite, porque o caminhão também não passava. Família grande, cada um ia para um lado, levando cabaças, latinhas de todo tipo, maneira de render a coleta. Perigo de desarranjo, piriri, de tanto comer doce. Ou de briga, pra ver se fazia doce de leite (mole ou de cortar), arroz-doce, pé de moleque, cada um com seu palpite, uma campanha até chegar num acordo. Acontecia de quebrar a cabaça, o freguês perdia a viagem; ou de lata apresentar furo, ser preciso tapar com cera de abelha, chumaço de algodão, qualquer coisa que aparecesse. Perguntei ao meu avô por que aquele costume, ele respondeu, seco: “É o preceito. Não vende leite, dá”. Fiquei do mesmo tamanho, sem saber o que era preceito.

Então, eu ia dizendo, meu pai tinha folga, a única do ano. No mais, o batido era feio. Levantava de madrugada, ainda escuro, saía pelas estradinhas de terra, chovesse ou fizesse sol. Pegava as latas cheias, entregava as vazias.

Conversava, pedia notícia das pessoas, sabia da vida de cada um, os negócios, as doenças, manias e preferências.

Às vezes nem apeava. Em alguns lugares só chegava até o barracão. Noutros o ponto era na beira da estrada, longe da sede da fazenda, vinha um empregado, um filho do dono, alguém trazendo o leite a cavalo. Tinha o lugar certo do almoço, pequeno repouso, prosa mais descansada. Aí, seguia. Entregava e recebia encomendas, tudo anotado, cada coisa registrada, assentamento dos gastos e acertos.

De vez em quando perdia a paciência, reclamava. Mas as pessoas gostavam muito dele. Tanto que, entre afilhados de casamento e de batismo, tem quase duzentos. Uma senhora disse uma coisa que, acho, foi o maior elogio que ele já recebeu. Ela propôs: “O governo devia fazer uma lei pra uma pessoa como o Sô Cláudio poder ter quantas mulheres quisesse, maneira de espalhar a raça. Porque vou te contar: homem bom feito esse, é difícil!”.

O leite era vendido pra Nestlé, que pagava no fim do mês. Então, tudo era anotado na tal caderneta; quando o pessoal recebia, acertava as encomendas. Costumava acontecer umas coisas engraçadas. O caso da Lili, por exemplo. Ela morava na Chapada e estava começando a costurar pro pessoal da região. Vinha no ponto de leite e fazia as encomendas: tanto de tira-bordada, sinhaninha, ponto russo, elástico de tal cor e largura, não sei quantos retroses, carretéis de linha número tal etc. De vez em quando aparecia pra acertar, porque o negócio dela não tinha nada a ver com o leite. Mas, também aí, quase não corria dinheiro. O pai olhava o assentamento na caderneta, via quanto dava, ela começava:

— Então, tá aqui três dúzias e meia de ovos…

— E esse ovo, Lili, é fresco mesmo? Olha lá, hein? – duvidava o pai, regateando.

— Que que é isso, Sô Cláudio? E eu ia trazer ovo velho pro senhor?

— Tá bom. O que mais? Laranja? Quanto cê tem aí?

— É um cento. Campista, legítima. De primeira!

O pai pegava o saco de laranja, dava uma olhada, entregava pro ajudante, que, naquele tempo, era o Mônico. Depois, virava pra Lili:

— Que mais? Banana?

— É. Dois cacho. Prata, apanhada de vez, quase madurando. Especial.

— Cê contou?

— Contei não. O senhor vê, o que der é isso mesmo.

— E o que que é isso aí, nesse balainho?

— Ah, é serra-d’água. Doce feito mel! Quatro dúzia. Interessa? Vou entregar direto pro Mônico.

— Pode. Ô Mônico, pega essa laranja, despeja e devolve o balaio pra ela. – Depois, virando pra Lili: — E esse frango aí, deixa eu ver.

Ela ia dizer uma coisa mas o pai, já meio apressado, muito chão pra rodar, pega o frango pelas pernas, balança duas, três vezes, sente o peso e fala, desdenhando, aquela tática de negociante:

— Ah, Lili, esse frango nem cresceu ainda, é pouco mais que um pinto. Quanto cê tá pedindo nele?

— Não, esse eu tô é dando. É pro senhor mais a Dona Aparecida comer domingo. Repara não…

Morto de vergonha, o pai não tinha onde botar a cara. Nem desculpa ele pediu. Agradeceu, arrancou o caminhão e saiu levantando poeira.

Nascido em 1938, em Morro do Ferro, distrito de Oliveira, Olavo Romano é Presidente Emérito da Academia Mineira de Letras, Editor Sênior da Caravana e autor homenageado da Bienal Mineira do Livro 2022. Formado em Direito, cursou o mestrado em Administração na FGV, seguiu carreira pública e se aposentou como Procurador do Estado. Em paralelo a essa jornada, correu mundo ouvindo e contando histórias, que reuniu em vários dos seus mais de 20 livros. Entre reedições e inéditos, a Caravana vem cuidando de consolidar o inestimável legado de nosso autor.

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