Vovó era uma mulher muito culta. Tinha resposta pra tudo. O que não sabia, deduzia. Há quem diga que inventava, mas vamos considerar a primeira opção pra não sujar a imagem da minha super-heroína. Nasceu há cem anos, orgulhava-se de dizer que tinha vindo ao mundo no ano da fundação do Partido Comunista e da Semana de Arte Moderna. Casou cedo, como casavam as mulheres do século passado. Dedicava-se à casa e à família como era esperado dela, mas sempre dando um jeito de não perder sua essência. Fritava pastéis para cinco filhos, mais tarde para oito netos, lendo um livro e ouvindo um rádio que tinha na cozinha. Os pastéis ficavam bons, as histórias e opiniões melhores ainda. Viuvou cedo. Ficou bastante inconformada com isso, fugiu do que tava planejado, mas ela sabia improvisar. Começou a se dedicar à poesia. Conheceu outras mulheres das mais variadas idades, que também escreviam. Juntas fundaram o grupo As ilustres desconhecidas. Encontravam-se até sua morte, todas às quartas-feiras de tarde, na casa dela. Contratavam professores para auxiliar no processo criativo. Lançavam uma coletânea dos seus trabalhos ano a ano. No meio da tarde faziam um intervalo para um chá com bolo, e que chá com bolo! Elas começaram a se reunir quando eu tinha uns 6 anos, e as acompanhei até meus 17 ou 18 anos, depois a vida me obrigou a trabalhar e perdi minha vaga de ouvinte oculta. Eu ficava quietinha, na sala ao lado fingindo que tava brincando ou vendo televisão, sem atrapalhar, afinal aquele era o momento da vovó e eu não me metia. De orelha em pé, ouvindo tudo o que falavam, e nariz farejante, aguardava a hora que me chamariam para tomar o lanche com elas. O bolo, o chá, as conversas eram a melhor parte da tarde. Vovó teve suas poesias premiadas mais de uma vez. A mais icônica foi quando ela recebeu o primeiro prêmio em um concurso que homenageava o dia do trabalhador. A poesia dela era sobre o trabalho doméstico, não remunerado, invisível. Vovó era à frente do seu tempo em seu tempo, revolucionária com cheiro de comida gostosa. Por isso até hoje escrever tem gosto de chá com bolo e ousadia.
Malvina de Castro é porto-alegrense e, em 2013, lançou o livro de crônicas As loucas aventuras da guria maluca. Já em 2021, pela Caravana, publicou seu primeiro romance Paralelos cruzados. Além disso, escreve em blogs e, há mais de dois anos, toda semana, traz algo novo no www.bomdiasociedademachista.blogspot.com. O livro Crônicas de um fim do mundo antecipado (Caravana, 2023) reúne algumas dessas crônicas postadas no site.