Numa manhã como outra qualquer, mas que seria diferente de todas as outras que viriam depois, olhou-se no espelho e viu, mas não despretensiosamente, aquele que crescia seguindo sua própria ordem e decisão, sem seguir o rumo clássico que todos os outros ali tomavam e que, com sua potência, reluzia claro na fronte chamando a atenção — até de quem passasse do outro lado da rua? — um primeiro fio de cabelo branco. Como podia, no auge de seus trinta e cinco anos, lidar com tamanha desorganização do pensamento, que não se conectava com a perfeição do tempo de seu corpo? Sem conseguir digerir a situação, empunhou a pinça que estava na bancada como se fosse uma espada e arrancou o fio pela raiz. Uma lição bem dada logo cedo para que aprendesse a não envelhecer tão repentinamente à luz de todos e de sua própria razão. Não é fácil aceitar a efemeridade de estar, de se ver passando enquanto alguns crescem e outros chegam. “O que é o homem? Um amontoado de doenças, que através do espírito se voltam para o mundo: lá querem fazer sua presa.” Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 39. A partir dali, elas chegaram e não de mansinho. Vieram todas, numa sequência quase sem respiro, para dizer-lhe que novos tempos se inauguravam. Alergias, fibromialgia, cálculos renais, apendicite, vírus, queimadura, internações e cirurgias. O corpo se abriu para as mais diversas experiências de doenças e dores, trazendo para a consciência física a máxima de que o tempo passa e não poupa ninguém, nem santos ou demônios, nem tolos ou inteligentes, todos estão sob seus desígnios. Então perguntou-se por inúmeras vezes quem teria sido a pessoa infeliz que havia criado essa medida sem escrúpulos chamada de tempo. Conjurou contra a própria espécie e depois, contra a natureza e quem sabe, contra quem inventou que estar vivo era bom. “Assim o corpo atravessa a história, vindo a ser e lutando. E o espírito — que é ele para o corpo? Arauto, companheiro e eco de suas vitórias”. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 73. Mas esse mesmo tempo, que deixa a marca indelével de sua força em nossa pele e em nossas vivências, há de ser enfim um bom conselheiro quando aprendemos a vê-lo com outros olhos. Aos quarenta, olhava para as mechas curtas, sem tinta azul e cheias de brancos despontando em generosidade, com reconhecimento de suas vitórias e dias inglórios. As marcas no corpo carregavam tanta coragem que passou a orgulhar-se delas. Sim, porque é preciso coragem para estar vivo e procurar caminhos de saúde e bem viver, de felicidade ainda que. E os contemporâneos termos difíceis para nominar suas experiências velhas, como esse tal “cringe” da geração de seus filhos, despertavam-lhe riso, curiosidade e até um pouco de boas recordações daquela época em que só pensava em crescer e chegar a algum lugar — sabe-se lá qual porque nunca de fato chegamos a ele, ou do jeito que tínhamos planejado. Então agora será assim? Sem novidades? O tempo aplacou a indignação, a surpresa e as manhãs de fúria, dando lugar a aceitação cômoda de tudo o que chega com a velhice? Obviamente que não. Por hora, mal consegue imaginar o dia em que seus olhos se lançarão para a própria vulva constatando ali um pelo branco ou ainda, a hora em que vestirá um óculos de descanso para suas vistas operadas aos trinta, que hoje ainda reconhecem um letreiro há bons metros de distância. Na verdade, o que mudou naquela manhã como outra qualquer, mas que seria diferente de todas as outras que viriam depois, foi o redirecionamento de sua trajetória, que seria permeada de uma vontade íntima de perceber a beleza em tudo e de espantar-se com ela.
Daniela Bonafé é paulistana, mãe, feminista, escritora, professora de Arte e autora dos livros Soprinho, brisa, ventania e tufão (2020), Útero (2021), Contos para o fim do mundo (2021), Menina na estrada (2022), Livro da Impermanência (2022) e Na redoma da flor (2022). Possui textos publicados em diversas antologias e revistas literárias como Contos de Samsara, Desvario e Cassandra. É finalista do 4º Prêmio Literário Afeigraf 2022, categoria infantil, e menção honrosa do 53º Concurso de Contos e Poesias Abdala Mameri. É membra do Coletivo Escreviventes e apresentadora do programa Rosas Literárias no canal Iaras e Pagus.
Adorei ler!
Ri porque me lembrei dos meus cabelos brancos que hora detesto e hora tenho vontade de deixá-lo los crescer.
Ri dos pelos da vulva que entregam a idade sem dó,rs.
Eu aceito e não aceito. Mas entendo que esse processo faz nos aceitar que somos finitos e que então temos de viver cada dia com gratidão por estarmos vivos e bem.
Prazer em conhece-la pelo que escreve.
Sou Ana Cauhy e espero conhece- la ao vivo um dia.
Beijo.
Obrigada Ana Paula, vou adorar te conhecer ao vivo também! Fico feliz que tenha apreciado a leitura e que tenha te trazido boas reflexões!
Sou uma admiradora que o tempo e a história tornam mais ferrenha. Você passeia pelos gêneros literários com desenvoltura e talento, e sempre com tamanha sensibilidade e contundência! Mais uma vez parabéns!
Obrigada, Sonia! Gosto muito de dividir minha escrita com você!
Brilhante sua crônica, parabéns!
Obrigada pela sua leitura generosa!
Daniela parabéns pelo texto, uma importante e maravilhosa reflexão. Um texto maduro, real e ao mesmo tempo sensível. Toca o coração de quem lê. Sucesso sempre.
Obrigada, querida. Penso que é um assunto necessário, precisamos desmistificar o envelhecimento que, para nós mulheres, é ainda um processo difícil.
Que texto tenro e belo!
Seus textos nos deixam pensando muitas coisas depois da leitura. Eles realmente promovem diálogos.
Parabéns, Daniela!
Obrigada, Elaine, é essa a ideia mesmo, abrir portas para boas conversas! Adorei te encontrar aqui!!!
Que texto delicioso, cândido, fácil de se identificar!
Sou sua fã!
Obrigada Carol pela sua leitura!!! Fico feliz que tenha chegado até você!