Autor de vastíssima obra, Silas Corrêa Leite (1952) volta a publicar e contempla agora leitores com um romance que pode ser considerado não só uma parábola da condição humana como um genuíno exemplo de literatura neopicaresca brasileira, vertente literária assim nomeada pelo escritor argentino-brasileiro Mario Miguel González (1937–2013), que foi professor de Literaturas Espanhola e Hispano-americana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), e mestre de gerações de hispanistas e professores de espanhol. De fato, Desjardim — muito além do farol do fim do mundo (Belo Horizonte, Editora Caravana, 2023) é um romance que surpreende por sua pouca linearidade e que, ao traçar a trajetória de um marginalizado brasileiro, recompõe um personagem que faz lembrar Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, e Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán (1547–1614), ícones do primeiro e do segundo “século de ouro” espanhol, que inclui o XVI, do reinado de Felipe II (1527–1598), que foi rei de Espanha (1556–1598) e de Portugal e Algarves (1580–1598), e boa parte do XVII, que são marcados por um conceito unificador: o barroco. Segundo o crítico espanhol Miguel Herrero García (1895–1961), em Nueva interpretación de la novela picaresca (1937), estas novelas não são mais que autobiografias ou confissões de pecadores escarmentados (ou seja, castigados), no sentido religioso por serem vistos como culpados por afrontarem a propriedade ou bens alheios, mas essa definição não chega a ser globalizante, sendo mais aceitável aquela que o hispanista inglês Alexander A. Parker (1908–1989) cunhou, a de delinquente, como se pode constatar em Literature and the delinquent (Edinburgh University Press, 1969), no sentido daquele que avança contra a moral e as leis vigentes, um ser sem honra e antissocial, mas não um gangster ou um assassino. No Brasil e em Portugal, o pícaro passou a ser aquela pessoa vil e astuta que vive de expedientes, transitando entre as várias classes sociais, um despossuído que com arte e dissimulação obtém o que deseja. Aqui, porém, o que se deve levar em conta é que muitas dessas pessoas acabavam por tomar essa trilha porque seriam vítimas de uma ordem social injusta. No caso do “século de ouro” espanhol, era uma época em que não havia sequer burguesia, ou seja, uns poucos nobres dominavam tudo, enquanto a maioria de dominados só tinha como saída legal para a sobrevivência submeter-se a um trabalho servil, análogo à escravidão. Mutatis mutandis, o Brasil de hoje não difere muito da Espanha daqueles anos abordados pela literatura picaresca, já que até há pouco tempo, por exemplo, os super-ricos não tinham sequer suas vastas rendas taxadas, enquanto multidões de famélicos enxameiam as ruas das grandes e pequenas cidades em busca de um prato de comida. Pois bem, o personagem principal deste novo livro de Silas Corrêa Leite, que completa uma trilogia que começou a ser projetada em 1995, reunindo Ele está no meio de nós (2018) e O Marceneiro — a última tentativa de Cristo (2019), é um delinquente, que, com os devidos descontos, pode ser também considerado um pícaro. Em outras palavras: o romance conta a tumultuada trajetória de vida de um jovem que começou pelo lado errado, ao aceitar participar de um assalto à mão armada em uma agência bancária na cidade de São Paulo, o que acabaria por se tornar uma tragédia familiar. Depois do crime consumado, o jovem meliante foge como querendo esquecer o mau passo dado e voltar ao começo da louca jornada da vida que escolheu e fazer tudo diferente. Mas quando não há uma saída, nada faz a volta ser pacífica. No meio do caminho do desespero, há ainda um palhaço negro vestindo um macacão amarelo, com um botijão de gás nos ombros largos, como um acusador e modificador de roteiro, feito um juiz e salvador no limbo das circunstâncias. Em poucas palavras: trata-se de um livro sobre medo, fuga, arrependimento, culpa e castigo, crime e acusação. Afinal, o que vem para salvar também pode cobrar seu preço. Tal como os dois livros anteriores, também este pode ser definido como místico, ecumênico e religioso — e, por isso, mesmo polêmico —, além de profético, ao anunciar um caos apocalíptico que parece se consumar nos dias de hoje. E, nesse sentido, segue as características principais da literatura picaresca espanhola, ainda que não se trate de uma autobiografia. Seja como for, embora narrado em terceira pessoa, não deixa de seguir o processo que se constata em Lazarillo de Tormes e Guzmán de Alfarache, ou seja, há um olhar de fora da sociedade, que condena as injustiças e iniquidades que os donos do poder cometem, mas que, ao mesmo tempo, deixa entrever que, se pudesse, o personagem também haveria de agir como aqueles que mandam. Melhor dizendo, o que o pícaro quer é ser aceito por aquela sociedade que o refuta e repele. “Assim, seu único objetivo como pícaro é deixar de sê-lo”, como bem observa o professor, ensaísta, poeta e tradutor espanhol Jenaro Taléns (1946) em Novela picaresca y práctica de la transgresión (Madrid, Ediciones Jucar, 1975). Um resumo do livro pode ser lido nas próprias palavras do autor, quando faz um retrato de seu personagem, antes dele conhecer Verônica, a filha de um vigarista bem sucedido, que haveria de se apaixonar por ele: “(…) Rafael, em abstinência aqui e ali, do errado percurso, tivera que, na marra — ou instinto? — se livrar do crack, e, malemal se cuidando, ter um bizarro “surto” de planejar e tentar um maldito assalto a banco que falhara. Era muito para a cabeça dele. Fugindo de seu passado, morara na rua, em Sampa, o pior lugar do continente para se morar na rua. A rua é um livro aberto. Sem rosto, sem navalha como cartão de crédito, como dizia uma letra de rock, dormira embaixo de pontes, sob viadutos faraônicos e estações do Metro superfaturadas por corruptos neoliberais, e conhecia muito bem os meandros dos subterrâneos da cidade refém do narcocontrabando informal; da Rua 25 de Março à Avenida Paulista. Conhecia os podres subterrâneos do Carandiru à Cracolândia, das privatizações-roubos (privatarias) às máfias e quadrilhas neoliberais que governavam os governos, numa corrupção endêmica institucionalizada e uma impunidade generalizada em todos os níveis, tudo blindado por parte da mídia abutre amoral atrelada com seus agiotas emboabas, e só ele sabia quanto faria bem voltar para casa, mesmo que doesse essa volta”. (pág. 83). Eis um retrato de um Brasil que quase nunca aparece nas páginas dos agonizantes jornais impressos de hoje ou mesmo nos sites das organizações que ainda os mantém que pode ser visto também aqui neste trecho: “(…) Nesse ínterim, souberam que o pai de Verônica ajuntara uma baita grana de fundo falso e suspeito (as máfias de São Paulo; Máfia do Lixo, do Transporte Público, do Metro, das Praças de Pedágio, da Merenda, da Saúde Pública propositalmente sucateada, do insano e amoral cínico estado mínimo — a modernização do atraso; o estado mais rico do Brasil, talvez também fosse o estado mais corrupto do Brasil), e por essas e outras falcatruas em bando, o velhote fugira com a filha Valkíria para algum lugar perto da Suíça, visando ali se esconder da justiça e também dos cobradores bandidos e corruptos neoliberais de Brasília, amigos do alheio no erário público, e de impunes gangues de privatarias (privatizações-roubos) de Samparaguai, como dizia. O entregador de gás sabia de lucros impunes, riquezas injustas (como narrou São Lucas), propriedades roubos, o próprio neoescravismo da terceirização e da necropolítica, e pensava como Roberto Bolaño: “A América Latina foi o manicômio da Europa, assim como os Estados Unidos foram a sua fábrica. A fábrica agora está em poder dos capatazes, e loucos fugidos são sua mão de obra. O manicômio está queimando o seu próprio óleo”. (pág. 135). Outro personagem marcante é o Advogado Dr. Sabe Tudo, de nome Ely, que trata de livrar Rafael das mãos da Justiça e que, para conhecer melhor seu cliente, faz uma viagem à cidade natal dele, a Santa Itararé das Artes, capital artística-cultural da região sudoeste do Estado de São Paulo, já na divisa com o Paraná, por coincidência (ou não?) também terra em que cresceu o autor. E, ao fazê-lo, acabou por conhecer (e ajudar) “os fracos e oprimidos da periferia de descamisados da cidade, compostos por excluídos sociais, polacos oriundos do êxodo rural, do noroeste do vizinho estado do Paraná, com a agricultura mecanizada e com técnicas modernas refugando seus homens humildes do campo”. Com isso, o leitor, acostumado a ver apenas pretos e miscigenados como maioria entre os excluídos, vai descobrir que, muitas vezes, a busca do lucro fácil em riquezas impunes também pode produzir hordas de descalçados de pele mais clara. Por aqui se vê que este é um romance que foge um pouco à linearidade que se nota nos últimos produtos do gênero, exibindo múltiplas linguagens e intertextos, pois procura, ao denunciar as injustiças de uma sociedade de desiguais, reproduzir a fala comum entre as massas de famélicos e remediados. E segue uma vertente neopicaresca de nossa literatura que inclui entre os seus precursores Manuel Antônio de Almeida (1831–1861), com Memórias de um sargento de milícias (1852), Mário de Andrade (1893–1945), com Macunaíma (1928), e, mais recentemente, Marcos Rey (1925–1999), com Memórias de um gigolô (1968), obras que reúnem anti-heróis, que receberam a denominação de neopícaros do professor e crítico Mario Miguel González e de malandros do professor e crítico Antônio Cândido (1918–2017). Nesse caso, como observou González, neopícaros e malandros seriam sinônimos. Quanto ao título do livro, o próprio autor é quem o bem define, ao observar que “muito além do farol do mundo” é uma expressão que abarca qualquer lugar, em que “qualquer um pode ser posto à prova em juízo de confinamento, jugo e valor”. Um leitmotiv que conduz para uma ideia de travessia, deslocamentos e retorno sem fim.
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997), Bocage — o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonia l (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo — 1788–1797 (Imesp, 2019), entre outros.