Todos nós possuímos uma biblioteca pessoal, afetiva, com nossos clássicos. Nesse meu recôndito, lugar para onde sempre me dirijo em busca do exemplo dos grandes, está Mário de Sá-Carneiro, fundador do modernismo português, em 1916, com o lançamento do primeiro número da revista Orpheu, cujo patrocínio vinha do bolso paterno e não perdurou até a terceira edição, o que ocasionou o desespero do autor, levando-o, entre outros motivos, ao precoce desaparecimento no Hotel Nice, em Paris, ainda nesse ano. Apesar da breve existência, Sá-Carneiro legou-nos obras em diversos gêneros, do teatro, com a peça Amizade, em parceria com Tomas Cabreira Jr., Princípio, A confissão de Lúcio e Céu em fogo, narrativas excepcionais, Dispersão e Indícios de ouro, ambas em verso sendo a última uma obra póstuma. O que liga toda essa produção é, certamente, o espetáculo, a ânsia de altura, a força metafórica das palavras que chegam às raias da loucura e do fantástico, sob a constatação de que a obra maior estava por fazer: converter-se em imortal, gigante! E decerto logrou êxito, ainda que soubesse, conforme carta dirigida a Pessoa, que a sua arte estava para ser compreendida dali cem anos, fato que se confirmou e fez com que ela atravessasse os anos dois mil com assombro e luz sobre o leitor. Na minha biblioteca pessoal, versos como os do poema “Álcool” dão a dimensão grandiosa de Sá-Carneiro: “[…] O que me ardeu / Foi álcool mais raro e penetrante: / É só de mim que ando delirante —/ Manhã tão forte que me anoiteceu”. Quem, além de Sá-Carneiro seria capaz de compor tão poderoso verso, feito de ouro e luz capaz de conduzir ao ocaso, uma apoteose invertida. Sua morte espetacular no quarto do Hotel Nice, para alguns foi premeditada, para outros uma encenação — mais uma de tantas chantagens emocionais contra os amigos — um ato malsucedido, enquanto o poeta se debatia, sob o olhar desolado do botica que chamaram para acudir, mas que assistia a um fim provocado por uma dose cavalar de estricnina. Fernando Pessoa, da Rainha do Mar, recebe a notícia funesta. Tarde demais, os amigos não puderam resgatar o vate, aquele que viu do alto o esplendor dourado das próprias asas — porque ele não mirava, jamais, o chão, só via a si mesmo e as alturas em que se refletia, em esplendor… Por isso, quem sabe felizmente, Mário de Sá-Carneiro anoitecera para sempre sublimado em luz, adormecido nos braços da Poesia.
Leonardo Costaneto é licenciado em Letras (UEMG) e mestre em Educação (UFMG). Editor-chefe da Caravana, também é sócio da Caburé Libros, em Buenos Aires. Entre outros trabalhos, publicou Aparecida Rainha (2020) e Angie (2021).