O homem que virou Sean Connery

No cruzamento da rua 45 com a 9ª Avenida, em New York, alguém grita: Ei! Sean Connery! Instintivamente, ele se vira para ver quem é. Um negro, com mais de um metro e noventa de altura, gorro de inverno na cabeça, usando um sobretudo surrado, reminiscente da guerra do Vietnã, sorri para ele e completa: Você é igual ao Sean! Mas você já sabia disso, não sabia? Solta uma sonora gargalhada, acena alegremente e some no meio da multidão.

Caminhando pela Bourbon Street, ele acompanha o gingado da música que escapa de todas as esquinas, bares, casas e vitrolas de New Orleans. Curioso, entra numa galeria de arte quando um senhor de meia idade se aproxima, olha fixamente para ele e diz: Desculpe, mas você é a cara do Sean Connery! Ele sorri e agradece, porque toma a semelhança como um elogio.

No bar em Agoura Hills, condado de Los Angeles, ele renova o seu copo de uísque e vai para a área reservada aos fumantes. Acende seu charuto quando ouve um grupo de rapazes e moças gritarem em sua direção: Ei, você é igualzinho o Sean Connery! Cuspido e escarrado!, e saem cantando uma canção incompreensível. No ambiente semi-escuro, ele se pergunta como é possível confundir alguém com alguém naquela luz obtusa e melíflua.

Sentado em um café, na Praça da Savassi, em Belo Horizonte, ele espera o amigo chegar. Meia dúzia de colegiais estão reunidos na mureta do pequeno jardim. Olham para ele, sorriem, cochicham, até que uma garota se aproxima e pergunta se podem tirar uma foto com ele. Ele concorda e todos se penduram à sua volta. Agradecem e retornam aos seus lugares. A moça mostra a foto no celular para os colegas e comenta: Não disse que era parecido? Igualzinho, gente, igualzinho! Trocam sorrisos e de soslaio, olham para ele como se fossem cumplices de uma descoberta extraordinária.

Não foram poucas as vezes em que situações como essas se repetiram. Em Paris, num bar da Rue de Mouffetard ou perdido entre os milhares de livros da Shakespeare & Co., ou caminhando sob o sol de outono nas ramblas de Barcelona ou subindo a ladeira de Granada em direção ao Alhambra ou perdido no labirinto do bairro judeu em Sevilha, ouvindo um fado tristíssimo nos becos da Ribeira, no Porto ou no burburinho do cais de Sodré em Lisboa, pisando as velhas pedras e pedaços de história no Oráculo de Delfos na Grécia, nas ruinas gigantescas de Baalbek, no Líbano, em dois ou três puteiros de São Paulo, num trem noturno para Madri, nas areias de uma praia em Búzios, no adro da Igreja do Rosário, em Ouro Preto, ou em uma rua qualquer de Juiz de Fora, no interior de Minas, na noite de choro em um bar recendendo a cachaça e bordões de uma viola de sete cordas, sob os Arcos da Lapa… Sim, já tinha perdido a conta de quantas vezes e em quantos lugares ouvira dizer que ele era a cara de Sean Connery.

Sem que percebesse, passou a acreditar que era, realmente, sósia do ator. Pensou que um dia, seria confundido com ele nas ruas de Londres ou de Edimburgo ou na casa do próprio ator, onde nem mesmo a criadagem notaria a diferença.

A partir daí ficou possuído pela ideia de se tornar Sean Connery, virar o outro, ser mais que sósia, mais que seu duplo. Passou a ver todos os seus filmes, leu sua biografia, escarafunchou revistas, reportagens, entrevistas. Já não havia um dia sequer que não se olhasse no espelho e não se achasse a cara de Sean Connery.

Passou a reparar em seus sestros, olhares, esgares, o balanço do corpo ao andar, pensou em fazer uma tatuagem imitando a cicatriz que o ator possuía no rosto, próximo à boca e que lhe emprestava aquele ar cínico de James Bond, com que enfrentava os adversários e as mulheres fatais.

A coisa toda acabou se tornando uma obsessão, uma espécie de loucura. Passou a sonhar encontrar Sean Connery em algum lugar do mundo e ter uma boa e convincente conversa com ele. A ideia era assumir o posto do ator em mais meia dúzia de filmes, enquanto o verdadeiro Sean apareceria em público cada vez menos, descansando num dolce far niente em sua mansão nas Bahamas, até que a vida se despedisse dele.

Apesar da diferença de idade, era 18 anos mais novo que Sean!, não via nisso nenhum empecilho à sua ideia fixa de se beneficiar dessa semelhança. O problema era o talento do ator, mas se as tomadas fossem em plano geral ou médio, tudo correria bem, ele acreditava. Sou mais do que um “stunt man” e se falam tanto é porque pareço, dizia na frente do espelho. Então, se decidiu. Comprou uma passagem só de ida para as Bahamas, onde Sean fora morar.

Reservou uma suíte no British Colonial Hilton, em Nassau, e desembarcou vestido a caráter. Era o Sean do filme “O homem que queria ser rei”. Deu três ou quatro autógrafos para fãs desavisados, devolveu alguns cumprimentos e atirou na direção do “concièrge” seu nome e um sorriso malicioso que se refletiu no grande espelho que dominava o lobby.

De pé em frente ao seu reflexo, ele se observa e observa o “concièrge” que, sem tirar os olhos dele, cochicha ao telefone, com uma voz que soa entre cinismo e perplexidade, diz: Boa tarde, Sir! É o William, do British Colonial. Tem um cavalheiro aqui dizendo que é Sean Connery. A voz de Sean é inconfundível: OK, Bill. Provavelmente é. Diga a ele para esperar. Chego em 10 minutos…

Nascido no Maranhão, Tonico Mercador é publicitário. Tornou-se ativo colaborador do Suplemento Literário do Minas Gerais. Publicou Itinerário da Era do RockIluminurasPerversos, Olhos quase cegosO Invasor de Livros, dentre outros. Foi presidente da Associação Profissional dos Escritores de Minas Gerais e diretor de redação da revista Palavra. Pela Caravana Grupo Editorial, publicou O Invasor de livros e Cantos de silêncio e ausência, ambos em 2019. Em 2020, a Caravana lança Tonico Mercador, 50 anos de poesia.

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