O canto da cidade

O centro não é razoável. Enxotado pela nobre sociedade bairrista, o centro se emancipou. Talvez seja por isso, por sua faceta histórica e peculiar, que os mais velhos, ao se referirem do centro, dizem da cidade. Vou lá na cidade comprar tecidos, resolver algumas coisas, eles dizem. Como se os bairros fossem outra coisa, que não cidade. Como se os bairros estivessem fora do alcance do caos do centro, da cidade. O centro é a cidade, é a identidade e é o caos. O centro é tudo aquilo que está pichado nos muros e nas alturas. É tudo o que deixamos de ler porque não gostamos, porque nossos corações benevolentes dizem que dói só de ver, por que padece pela falta de beleza e justiça. Coitados, dizem cheios de pena ante ao que julgam falta de progresso. Pobres coitados.

No centro se vê de tudo: galerias, estacionamentos, bordéis, salões, bancos, supletivos, feiras, sebos, pastelarias, parques municipais, comércios e mais comércios, entre muitas bijuterias e maquiagens — antigos 1,99. Anúncios vindos de todos os lados: compro ouro! foto 3×4 na hora! e alguns devotados colaboradores de ONGs que se valem do convencimento e da caridade. Eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, mas… Esses também! Especialmente nas conduções públicas em que já se é estabelecido um acordo com o motorista, o “motô”. Há bares por todos os lados, geralmente o bar-de-alguém. Os nomes são bem diversificados, embora se veja vários com o mesmo nome, quase sempre apelidos. Os clientes são bastante fiéis. Não vendemos fiado. Favor não insistir. É bom lembrar.

Há também a medicina do trabalho, que oferece atendimentos populares, rápidos e baratos, para combinar com os beltranos e sicranos do centro. Os hippies e indígenas da rua tomam conta dos grandes canteiros centrais, formam a própria comunidade de cangas no chão. Os caramelos, leais cachorrinhos de andarilhos e sem-teto, ficam em torno, embora livres, com algum colar de macramê enfeitando o pescoço. Cavalos e militares também se vê, em duplas ou trios, preponderantemente descontentes ou debochados. O mercado central que todo centro tem, o miolo de lojas paraguaias e chinesas de eletrônicos falsificados, capinhas para celular… tudo aos montes, tudo negociável.

As faixas de pedestre da cidade estão sempre ocupadas de gente de todo tipo, além dos olhos-vivos fotográficos. É como uma cena de filme americano: aquele montueiro de gente que se entrecruza e atravessa a famosa avenida da grande cidade, como aquela em Nova Iorque, e vez ou outra se esbarram pelos ombros sem nada a dizer senão a câmera lenta destacando o aborrecimento. Aqui as mochilas de peito, que andam antecipadas do corpo, substituem aquelas de couro, sofisticadas maletas de mão. Contudo, o centro se faz, especialmente, por seus grandes blocos de arranha-céus antigos, vintage, que dão borda e encanto arquitetônico à cidade, fazendo das ruas e alamedas um caminho de pequeninas gentes (especialmente visto do alto, da coroa da obra); em que alguns passam para trabalhar, outros para comprar, outros para roubar e outros passam por passar. Por sorte não se despenca um corpo sobre o seu.

Quem mora no centro sabe: a cidade é gris. Pela madrugada escuta-se um pouco de tudo. Pega ladrão! Socorro! Ajuda! Em algumas noites se escuta canções de velhos bêbados saídos dos botecos-de-nome, com copos de plástico entre as mãos trepidantes — resto de aguardente —, que andam a tropeçar pelas calçadas enquanto mexem com as mulheres do ponto. Há, portanto, mulheres do ponto, mulheres da esquina, mulheres que rodam bolsinha, mulheres micro-auto-empreendedoras. Há loucos maldizendo das próprias alucinações, vidros sendo quebrados, carros colidindo, alarmes tocando, caminhão de lixo recolhendo e, às vezes, um corpo caindo. Este, embora visto como lixo, o caminhão não recolhe ou recicla.

Escuta-se, enfim, o grito de quem testemunhou o ato breve, o despenhadeiro da vida. Suicídio! Quando pensamos no barulho de um tiro ou de um trombar entre carros não há indefinição quanto a sonoridade que as ocasiões emitem. Mas o barulho de um corpo despencado — do vigésimo sexto andar — de encontro ao chão é diferente. É desconhecido, ainda que nos provoque alguma estranha familiaridade. É oco e é rápido. De imediato suspeitamos de um ato excêntrico, sobretudo por se tratar do centro. Será uma manifestação? Geralmente é, embora mal-dita. Coisa de vagabundo, pensam.

Quando se escuta o despencar da morte pela noite quer dizer que o morto se preparou para evitar o espetáculo, ou mesmo para evitar outras mortes por esmagamento e infarto, ou porque o insuportável se ocupou da hora, do corpo e da noite. Bom senso, diriam. Uma ressalva, mas que não salva.

Alguns edifícios que ficam famosos por tornarem-se point de lançamento de corpos precisam intervir na fama. Seu cume passa a ser interditado, deixando o acesso restrito aos funcionários. Outros inauguram fortes grades, como se já não bastasse a prisão dos apartamentos ou, ainda, a prisão de se pertencer a um corpo no mundo. Um corpo no centro do mundo. Escolham outro lugar para morrer, isso sim, no máximo, é o que dizem o entremetimento das diretorias. Já o comércio, em seu ponto mor de empatia, lamenta a morte de mais um consumidor quando este não é miserável. Que pena, menos um cliente. A vida segue e um corpo espatifado no centro, dentre tantos outros que dormem pelas quinas, desvairados, esfomeados, será sempre um corpo anônimo. E que deixa de ser. Que faz o favor de se apagar e é melhor não espalhar a notícia.

Pelo mesmo lado da coligação dos edifícios, comércios e cidadãos de bem, o mercado da morte se aquece a cada despejo urbano. O cemitério prepara o dramático evento envolto por grandes urubus de ternos pretos, que antes de tudo, meus sentimentos; palavras enrijecidas pela recorrência (até aí fazem o melhor que podem) para, então, darem início ao circo da defunção. Enterrar um morto custa caro: com ou sem música, com ou sem padre, com ou sem flores — qual será o caixão do morto? Assim, decidido onde cair morto como um presunto, estreiam a passeata rumo a cova dispendiosa que custará o rim de algum parente vivo.

A cidade — que não é o centro — não quer saber desses mortos, ou mesmo dos mortos que ainda respiram. Salvo os porteiros que sim, esses querem saber dos mortos dos vivos e, de fato, sabem. Os porteiros se comunicam e se vigiam pela madrugada, e costumam dar bons conselhos para quem está de saída.

Deus salve os zé-povinho, a ralé e a escória, pois ninguém mais o pode fazer. Deus salve os porteiros, os loucos, os bêbados, as prostitutas, os pobres, os animais — os suicidas, não; esses querem morrer — pois são eles, todos eles, o seio do centro; aquele sopro restante da cidade.

A cidade tem nome, tem chancela, tem chacina. Mario morto, Marta morta.

Mineira, natural de Belo Horizonte, Juliane Mena Tôrres é psicanalista e escrevelista. É autora do livro infantojuvenil As fabulosas desmemorices e invencionices de um velho artista (2022) e Conta que faz de conta (2023). Concavidades é seu terceiro livro.

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