Em recente conferência promovida pela Organização das Nações Unidas, a simpática Sophia, um robô, alimentado por inteligência artificial, declarou a um entrevistador que “robôs humanoides podem liderar com mais eficiência e eficácia do que os seres humanos”. A cena, que viralizou na internet, provocou um certo riso nervoso e um indisfarçável arrepio na base da coluna de todos os que já viram, incontáveis vezes, imagens semelhantes em obras de ficção científica. E o final dessas histórias, já o conhecemos bem, não costuma ser lá muito favorável para os seres humanos. Queiramos ou não, as máquinas estão cada vez mais imbricadas em nosso cotidiano. E estão se tornando cada vez mais inteligentes no mesmo ritmo em que nós, por pura preguiça, parecemos estar emburrecendo na medida em que mais e mais dependemos delas para atividades corriqueiras. Preguiça, aliás, parece ter sido a razão original de as termos criado. Segundo o relato bíblico, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso por terem provado do fruto proibido, receberam, como parte da sua condenação, a pena de ter que trabalhar, e trabalhar duro, para obter seu sustento da terra. Assim, aquele casal que vivia vagabundeando nu pelas alamedas do Jardim do Éden, sem ter de se preocupar com o de comer e o de beber, precisou, desde então, de suar, e muito, para conquistar o pão de cada dia. Não é difícil imaginar o diálogo dos pais da humanidade junto aos portais recém-fechados do Éden, onde um anjo fazia às vezes de leão de chácara para impedir-lhes a entrada: “E agora, mulher?”, “Agora o jeito é pegar no pesado.” E por esse motivo, desde então, a mulher recebeu a alcunha de Patroa. Mas, como Adão e Eva logo descobriram, trabalhar dava muito trabalho. Quer pão? Tem de plantar o trigo, e cuidar, e colher, e debulhar, e secar, e moer, e amassar, e assar. Uma trabalheira só… “Era tudo tão mais fácil no bem-bom do Paraíso!”. E porque sentiam falta daquele ócio, não demorou para que procurassem meios de diminuir sua carga. Espertamente, recorreram à força bruta dos animais, que nada tinham a ver com o castigo da humanidade, mas que acabaram, por assim dizer, pagando o pato. A palavra trabalho, aliás, vem do latim tripalium que era o nome de uma ferramenta de três pernas usada para imobilizar bois, cavalos e burros para receberem ferraduras, donde se pode dizer que as pobres bestas foram literalmente ferradas, tendo de cumprir boa parte daquela pena destinada ao bicho humano. Reduzir o trabalho passou a ser, desde os primórdios, uma obsessão da humanidade e o lema que move a raça humana bem poderia ser: “Deve ter um jeito mais fácil de se fazer isso”. Essa obsessão, é claro, repousa no indisfarçável desejo de reconquistar o ócio do Paraíso Perdido. Mas, não sendo possível voltar ao jardim edênico, o projeto humano passou a ser o de construir para si um paraíso artificial, um lugar onde não se tenha mais de trabalhar para comer e onde se possa apenas descansar sem ter se cansado. Se nos primeiros tempos contaram com o lombo das bestas para substituir seus próprios músculos, logo a humanidade compreendeu que era possível produzir bem mais (e, consequentemente, trabalhar bem menos) utilizando de certos dispositivos criados para potencializar a força de seus braços e pernas. E assim, nasceram as máquinas. Nasceram é modo de dizer, já que elas, de fato, não surgiram pelas vias naturais do nascer e morrer, mas por força do artifício humano. E não pararam de evoluir, embora evoluir também seja um modo de dizer, já que elas também não evoluem pelos mecanismos na seleção natural, como bem os descreveu Darwin, que, aliás, não acreditava nessa história de Adão e Eva. E na busca pelo eterno descanso do paraíso, os seres humanos não descansaram… continuaram pensando em formas de reduzir o trabalho, de aumentar a produtividade e não pararam de trabalhar na busca da máquina que fizesse por eles o trabalho, todo o trabalho, todos os trabalhos. A palavra robô, aliás, deriva de um vocábulo checo que significa trabalho forçado. E esse projeto atravessou as gerações e os séculos até chegar aos nossos dias quando temos criado máquinas capazes do que antes era impensável: pensar por nós. Assim chegamos aos nossos gloriosos dias de expansão da inteligência artificial das máquinas e da burrice natural dos seres humanos. Cada vez há menos trabalho para nós, afinal, a máquina pode fazer tudo e de forma mais rápida, mais eficaz, mais eficiente. Confesso que tive de resistir à tentação de encomendar essa crônica a um desses algoritmos on-line a quem bastaria dizer “Escreve aí uma crônica com oito parágrafos sobre a relação entre inteligência artificial e o trabalho humano”. Bastaria? Uma máquina declara que poderá nos governar melhor do que o faríamos. Aurora de uma distopia apocalíptica que assistimos pelo telejornal, e não pelo cinema. Talvez seja uma questão de tempo. E o que restará, a nós humanos, senão rezar pedindo arrego àquele Deus que nos expulsou do Paraíso? Ou, talvez, nem isso. Uma amiga comentava como sua mãe, depois de ganhar um desses dispositivos eletrônicos que respondem ao comando de voz, passou a ordenar-lhe todas as manhãs: “Alexa, reze o terço!”. E enquanto a máquina desfia com sua voz mecânica a sequência de padre-nossos e ave-marias, ela pode se ocupar de outras coisas. Ou de nada.
Henrique Fagundes Carvalho nasceu em 1981, em Perdões, MG, e reside em Belo Horizonte, onde é servidor público. Graduado em Psicologia (UFMG), possui pós-graduação em Roteiro para Audiovisual (PUC Minas) e mestrado em Estudos Literários (UFMG). Tem contos e poemas publicados em diversas coletâneas e é autor do infantil O Livro de Monstros de Ledo e dolivro de poemas Liturgia das horas, publicado pela Caravana.