O corpo negro ainda luta por liberdade

Um dia desses propomos uma tarefa às nossas estudantes do curso de pedagogia para que escrevessem sobre como tornar a escola e a sociedade espaços inclusivos, de promoção da vida e da diversidade para todas as infâncias. A atividade foi orientada após um ciclo de formação sobre o racismo e as relações étnico-raciais, que é um dos temas-base de nossos colóquios de diversidades e direitos humanos. Como coube a este professor fazer as correções dos trabalhos, certamente, ao me deparar com as produções, surpresas, questionamentos, emoções outras me perpassaram ao estar em contato com as reflexões apreciadas. Em um desses trabalhos (ficará no anonimato), li um pequeno trecho escrito por uma querida estudante que dizia “o tanto que eu lutei quando era criança para ser aceita nas atividades que eram propostas, ou para ter amigos que não fossem da minha cor”. Logo, me veio à memória várias outras situações que envolvem a solidão, a exclusão de crianças negras, mas também suas formas de (re)existência para se fazerem presentes no curso da história.

Me lembrei de um semestre passado em que uma outra querida estudante, após ter o contato com Ensinando a transgredir, da bell hooks, compartilhou em nossa comunidade de aprendizagem que ela lembrava o tanto que teve que lutar também diante dos diversos desafios que enfrentou por ser a única estudante negra em uma escola da região central de Belo Horizonte, o que me fez lembrar da história de Ruby Bridges, a primeira criança negra a estudar em uma escola para brancos nos Estados Unidos. Ruby Bridges, para ir à escola, tinha que ser escoltada por que havia um volumoso número de pessoas brancas que queriam a permanência da segregação racial e expulsão de pessoas negras dos espaços que historicamente foram privilégios das pessoas brancas norte-americanas. Quando li a frase citada anteriormente na reflexão da querida estudante do semestre em curso, ainda me fez lembrar de um caso ocorrido a pouco tempo atrás no Brasil com a filha de Ana Paula Xongoni, em que ela relata que no condomínio em que morava, sua filha sempre que tentava brincar com outras crianças, era preterida. Sempre que sua linda menina negra se aproximava, as outras crianças brancas se afastavam e riam dela. A menina disse para a mãe que já acostumou brincar sozinha, porque “É sempre assim, mãe, mas eu não me importo, gosto de brincar sozinha”. Neste contexto, quando nós educadores propomos em discutir em um curso de formação de professores(as) as relações étnico-raciais, o racismo, as diversidades e os direitos humanos, é para que situações como esta não existam mais. É para que os corpos negros infantis, periféricos, não sejam mais segregados socialmente, mesmo vivendo sob uma suposta democracia. Esta criança negra, que lutou para fazer amizades, que lutou para ser sujeito da história, ainda continua a lutar, ecoa nos dias de hoje. Nossas crianças negras, que estão sob o signo da morte nas periferias brasileiras, precisam mais do que nunca de educadores e educadoras antirracistas. Deixo o convite para que se assista ao vídeo feito por Ana Paula Xongoni intitulado “Eu tenho pressa”, que retrata muito bem a necessidade de combatermos o racismo em nossa sociedade.

Após a correção dos trabalhos das estudantes de pedagogia, o que consigo expressar são estas palavras, que não são só minhas, mas de todas as crianças negras que ainda clamam por justiça. E fico por aqui com as palavras de Ana Paula Xongoni:

“Em lágrimas escrevo: Tem muita coisa linda na maternidade, mas tem muitas dores também. Ser mãe de uma menina preta me trouxe muitos medos, muitos desafios e muita força. É muito triste ver a sua filha sendo rejeitada! Mesmo antes de dizer “Olá!”, ela chega perto e todas correm, ela se aproxima, e todas as outras se agrupam, ela chama e ninguém responde. Isolam-na, excluem-na, a machucam. Ela não entende, mas sente. Não reclama, mas entristece. Meu coração parte! Dessa vez eu tava aqui espiando, chorando e pensando em formas de acolher a minha filha. Dessa vez eu chamei ela pro meu colo, abracei, disse que ela era linda e inteligente, falei que a amava. Mas e quando eu não estiver? A gente sempre fala da solidão da mulher negra, muitas vezes relacionada a afetividade adulta. Mas essa solidão começa muito cedo, começa na infância. O racismo é aprendido pelas estruturas e reproduzido pelos pequenos de forma assustadora. Tivemos avanços, mas as nossas meninas negras ainda são preteridas, rejeitadas, isoladas. À minha filha eu perguntei: Suas amigas não querem brincar? E ela me respondeu: É sempre assim, mãe, mas eu não me importo, gosto de brincar sozinha. Será que gosta? Ou aos 4 anos já se protege na solidão? E pra você que acredita que é ‘coisa de criança’, certamente você não é uma mulher negra. Nós mulheres negras vivemos esses mesmos traumas na infância. Foi ruim, mas com o passar do tempo a gente esqueceu, superou ou refletiu em outros momentos da vida. Mas ser mãe te faz reviver alguns deles, e dessa vez de forma mais intensa e muito mais dolorosa. Dói muito!”

Para assistir ao vídeo “Eu tenho pressa” (Ana Paula Xongoni), acesse o link YOUTUBE. Que sejamos antirracistas; que fortaleçamos a luta pela construção de uma sociedade emancipatória, mas que seja emancipatória a partir das crianças, com elas e para elas; que nenhuma criança negra e indígena fique fora da democracia, da sociedade e de nossas práticas pedagógicas e outras.

Otavio Henrique Ferreira da Silva é doutor em educação, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e líder do Grupo de Estudos Periféricos – GEP.

4 thoughts on “O corpo negro ainda luta por liberdade

  1. Ícaro Moreira Prado says:

    É uma fala incrível, carregada de lutas sou estudante de pedagogia também percebo muitas dessas questões que infelizmente permeia a sociedade em grande peso, e Ana Paula Xongoni ao falar “O racismo é aprendido pelas estruturas e reproduzido pelos pequenos de forma assustadora. Tivemos avanços, mas as nossas meninas negras ainda são preteridas, rejeitadas, isoladas.” é de fato a realidade, mas contudo por meio da educação acredito que há de chegar o ápice positivo da educação e será um momento tão lindo que falaremos “por que fazíamos aquelas atrocidades antes” em todas as áreas!

  2. Denise de Souza Sampaio says:

    Texto brilhante, me emocionei enquanto o lia, lembrei de minha infância,
    da adolescência, da juventude e do quanto eu queria estar inserida nos grupos da escola que eram majoritariamente composto por brancos e pardos. Lembrei-me de quando tinha uns 8 anos e minha mãe com todo amor fez um trançado em meu pequeno cabelo e amarrou as pontinhas com uma linda fita de cetim na cor rosa, quando cheguei à escola as outras crianças riam de mim, diziam que estava feio, que meu cabelo era duro como Bombril, me chamavam de neguinha. Esse episódio me marcou muito e como eu era uma criança, não sabia lidar com tal situação, me sentia rejeitada, deslocada, foi então que na adolescência eu comecei a alisar os cabelos como forma de aceitação social. A medida que o tempo foi passando , fui refletindo, compreendendo e me entendendo. Atualmente, já na fase adulta e com quase 40 anos tenho consciência de quem eu sou como mulher, tenho orgulho da minha indentidade, da minha negritude e de como sou linda por dentro e fora, sem contar que fui agraciada com uma maravilhosa melanina!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.