Eu não tenho medo de avião. Quer dizer, é claro que a aterrissagem não é a coisa mais agradável desse mundo, mas nada que me deixe em pânico, a despeito de meu medo de baratas e de quase todas as outras coisas dessa vida. Acontece que, semana passada, meu voo estava marcado para o mesmo dia previsto para a chegada de um ciclone extratropical em Porto Alegre, de onde partiria meu avião rumo a São Paulo. Cogitei cancelar a viagem, já que a recomendação dos institutos de meteorologia era para não sair de casa, mas sempre penso que nesses cenários caóticos é que nada de ruim acontece, porque os cuidados são re-redobrados; acho que coisas ruins só acontecem quando todos estão distraídos e confiantes. Resolvi pegar na estante o livro “Poeta chileno”, de Alejandro Zambra, para me acompanhar nessa viagem apocalíptica. O protagonista Gonzalo é um professor de literatura aspirante a poeta, e também padrasto do menino Vicente. A vida dos dois é atravessada pela poesia, mas o livro é mais do que isso. É uma história sobre a paternidade, sobre uma família não tradicional, sobre desejos. Sobretudo, é um livro sobre o sentimento de ler e escrever. Zambra fala de literatura o tempo inteiro nas mais de quatrocentas páginas do romance, mas numa linguagem sem solenidades. São palavras que poderiam ser ditas numa conversa, por qualquer pessoa, de um narrador atento às minúcias cotidianas. É um livro que ironiza a intelectualidade e cita Emily Dickinson, R.E.M, Nicanor Parra e Homer Simpson no mesmo capítulo. Talvez por isso eu tenha me emocionado tanto quando me deparei, já em São Paulo (e viva), com a exposição “Essa nossa canção”, no Museu da Língua Portuguesa, que mistura Chico Buarque e Marília Mendonça, lado a lado, em reproduções de manuscritos originais de canções. No momento de maior turbulência no voo, a senhora que estava ao meu lado lançou mão de um discreto rosário dourado que carregava em sua bolsa. Dois meninos que estavam sentados atrás da minha poltrona e aparentavam ter um pouco mais de dez anos, gargalhavam a cada solavanco mais severo (parece montanha-russa!, eles diziam, eufóricos), enquanto dois bebês que pareciam gêmeos, no colo de seus pais nas poltronas vizinhas, dormiam um sono imaculado. Não lembrei de ter medo e, ao invés disso, escrevi.
Camila Melo é gaúcha e nasceu em 1985. Formada em Direito, trabalha como analista jurídica na Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. É colunista no jornal Diário de Canoas. Caixa de spam é seu livro de estreia.