Onde pulsa

O que José Saramago, Milan Kundera, Elena Ferrante e Amós Oz têm em comum?

Respondo que é o lugar onde me tocam e talvez seja o mesmo em que outros escritores e escritoras tocam você. É algum ponto indefinido no centro de tudo que você é, onde fica toda a sua própria memória de ser humano, e em que se cruzam muitas vidas e sentimentos comuns a todos cujo coração bate ou já bateu: o exato lugar onde o individual encontra o universal.

O primeiro que apareceu em minha vida foi Saramago, que veio logo me trazendo a claustrofobia de A caverna e a não redenção de seus personagens. Comecei estranhando sua pontuação, os diálogos no meio da narrativa, seu jeito cortante, mas fui fisgada muito rápido. Alguns de seus livros, como Jangada de pedra e Ensaio sobre a cegueira, vieram me lembrar que às vezes há sim um destino comum partilhado, mesmo que contra a vontade. Depois veio Kundera, que não me sobressaltou a princípio, quando li A identidade, mas que me cativou quando cheguei ao seu A insustentável leveza do ser, um livro que precisa ser lido com calma e sem julgamentos tolos sobre os humanos que somos todos nós: medrosos, arredios, generosos demais ou de menos no amor.

E o que dizer de Elena? A amiga genial é áspero, cansativo, e confesso que parei a leitura algumas vezes, até que resolvi encarar os fantasmas de Lenu e Lila, alguns parecidos com os meus. A partir daí não consegui parar de segui-las até o fim da tetralogia. Depois de Elena, quase tudo ficou insosso ou superficial e precisei de um tempo para me recuperar da sensação de que nunca mais leria algo tão anímico. Mas aí conheci Amós! Amós e seu O mesmo mar, um livro curto, despretensioso, que mescla poema e prosa, com diferentes narradores. Sua escrita bonita, sensual, leve como uma pena e, ao mesmo tempo, tão implacável em revelar a natureza humana, me surpreendeu. Em Judas, Conhecer uma mulher, Não diga noite, fui me apaixonando ainda mais por sua forma cálida e compreensiva de lidar com a nossa vulnerabilidade comum.

Acredito que esse dom de relatar o humano de forma tão nítida e universal, que percebo nesses quatro, esteja ligado a uma grande coragem de entrar para dentro — em pleonasmo mesmo — e olhar bem de perto as próprias sombras, procurando desvendar como atua uma mente, a sua, e como fala um coração, o seu, e materializando agruras ou prazeres não mais em nuvens vagas, mas em palavras. Da mesma forma, há que se ter a coragem de sair para fora — outro pleonasmo necessário — e encarar os outros, aceitando-os como fontes inesgotáveis de percepção, observando como se movem na vida, sentindo suas emoções sem absorvê-las, mas sabendo que são matéria do mesmo barro.

Também requer coragem ler esses escritores que nos tocam, já que nos desnudam muito facilmente. Por outro lado, nos lembram que não estamos sozinhos em nossa humanidade. Claro que dentro do que é privado em cada um de nós, os que fazem isso por mim podem não ser os mesmos que o fazem por você. Talvez sua combinação perfeita seja Dostoiévski, Gabo e Clarice. Além disso, nossos preferidos podem mudar com o tempo, com a nossa fase de vida, com nossos interesses e metamorfoses. Mas tenho certeza que, se você gosta de ler, alguém já conseguiu te tocar nesse lugar que nos mantém humanos ou que nos faz mais humanos: o ponto exato onde a pulsação é incontornável e não é só sua.

Flávia Alcântara é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo e trabalha há muitos anos como pesquisadora. Começou a escrever crônicas e poemas em 2020, quando criou o perfil de Instagram @blogaponte. Publicou nas coletâneas Cartas de uma pandemia e Cartas para crianças do futuro. Seu primeiro livro de crônicas, Se eu não tivesse vivido do avesso foi publicado pela Caravana Grupo Editorial. 

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