Por uma rua escura

Ele buscava qualquer reação do seu coração, caminhando pelas ruas geladas de junho. Deixava que o vendo cortasse algo morto há muito tempo. Pensava em rotações erradas, acreditou, enquanto o frio aumentava seu batimento cardíaco. A lâmpada de um poste havia se queimado e ele enxergava apenas o contorno das árvores e a neblina, mistificando casarões e ruelas sinistras. Ouviu um som de piano naquela esquina em que parou para acender um cigarro, mas não sabia ao certo de onde vinha. Talvez ele estivesse apenas imaginado as coisas, talvez tendo algum tipo de alucinação.

A cabeça latejava, não havia comido muito nos últimos dias e o seu rosto mostrava a noite mal dormida, mal sonhada. Tentava esquecer, mas ele sabia que seria impossível apagar o que machucava tanto agora. Vagou pelas ruas vazias à procura de um bar aberto. Andou mais uma quadra antes de encontrar um. As mãos congelando enfiadas nos bolsos e a gola do paletó levantada. As lembranças se derretendo na neblina (oblíquos pensamentos congelados em partículas de dor). Finalmente se sentou. Estava exausto de caminhar pelas ruas quase desertas neste mês frio. Pediu o de sempre. Rum e Coca-Cola como nos tempos em que era mais jovem. Sentia dor, mas também um alívio que começava na garganta e acabava no pensamento que parecia mais claro agora. Decidiu que nada daquilo o sufocaria mais. Quarenta e duas horas atrás ele havia pensado que tudo era um completo caos. A bebida aquecia seu corpo e já podia racionalizar os fatos que o deixara tão confuso. Por onde andara nos últimos cinco anos? Sentia que vegetava entre um mundo e outro e que alguma coisa gritava inutilmente dentro do seu estômago. A memória falhava ou seria autocomiseração martelando desesperada? Tampava os buracos de sua dor com doses cada vez maiores de seu anestésico. Apenas um paliativo a mais, um dia a menos. Uma navalha cortando em fiapos milimétricos o seu coração. Tardia, sempre tardia a sua compreensão do caos interno que carregava agora. Sempre atrasadas as suas deduções que ao final não o levaram a nada. Sentia naquele momento que nenhum espaço ocupava seu corpo e que nenhuma molécula errante fazia sentido. Era como se levitasse. Respirar, apenas respirar com cuidado, atento aos compassos de seu coração vagamente ateu, certificando-se de que não pararia agora. A alma quebrada flutuando longe, dando ao corpo a sensação de que já não existia. E não existir naquele momento era tão pleno quanto a ilusória alegria de ontem. Ambas eram plenas. Plenas e absolutas. E tanto o acúmulo da alegria e o acúmulo do nada o levavam a um estado eufórico e inesperado, quase à margem da realidade.

Ele procurou as chaves nos bolsos da calça e apalpou o peito dormente. Molhou a boca e sentiu o frio na fronte escorrendo involuntário. Morreu antes do último cigarro que tentava acender contra o vento, antes da última lembrança que veio em fragmentos. Antes, bem antes de acreditar.

Cema Mendes nasceu em Lavras, MG, em 1963. É graduada em filosofia pelo Unilavras, pós-graduada pela UFLA e especialista em filosofia clínica pelo Instituto Packter. Lecionou nas áreas de artes, música, história, pintura, literatura e filosofia. Morou em Brasília, Espírito Santo e nos Estados Unidos, onde iniciou a carreira de artística plástica realizando várias exposições individuais e coletivas. É autora do livro de contos Escuro novembro (2023), publicado pela Caravana, e do livro de poemas 78 rotações (2022).

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