O lado minguante: mundo de contrastes

Há sempre muitos modos de ler e d’escrever um texto, seja na forma livro ou em qualquer outro de seus arranjos tipográficos ou de diagramação. Quando se trata de um livro de poesia, então, as possibilidades parecem se multiplicar. Nele, as palavras nunca são precisas. Nelas, há sempre um resto a incomodar, acariciar ou a inspirar.

Esse desassossego me veio novamente ao ler o belo livro “O lado minguante”, de André di Bernardi, recém-lançado pela Caravana Grupo Editorial. E aumentou ao passear por suas páginas e ao me deter para cavucar palavras para escrever este texto, e reencontrar um poeta reconhecidamente maduro, criativo e perspicaz, para quem “só são realmente belas/é claro, é notório/as palavras que despencam/que se desfazem líquidas, aquém/de todos os textos acadêmicos.”

Apesar dessa salutar desconfiança com os textos acadêmicos, foi neste mundo que fui me inspirar para propor maneiras de lê-lo. E foi no espaço conjugado da cartografia e da etnografia do texto e no texto que fui absorvendo-o lentamente. O que é possível mapear no texto? Ah! são infindáveis os caminhos pelos quais o texto nos conduz! Mapear a natureza na obra de André di Bernardi é fácil. Na linguagem literária do livro, os elementos primordiais fazem-se texto, palavras, gestos de inacabamento. O fogo é “o mais poderoso, o mais simples/o mais carente dos generais. /Ele, nobre comandante, que ao envolver/ reduz tudo que toca a quase nada”. O ar é majestoso n’“as nuvens, minuciosas, serenas, desgovernadas/o vento, o calor, o frio invisível/uma árvore, e a floresta inteira/e todos os bichos que nela sonham”. E a terra e a água? “As mulheres/(e a terra, e a própria água,/o próprio mar, e as folhas,/as árvores, e todas as sementes)/assimilam águas/que só elas e as suas crias.”

Na cartografia dibernardiana, dos quatros elementais, é a água, sem dúvida, que sintetiza tudo. O verbo é a-mar, o elemento é amor; la mer do amor é a mulher, síntese, mistério e perigo. Medo, pois desconhecida e fundadora! No encontro de amor com duas mulheres que se nasce pai. “Da mesma forma que só soube/do que sou depois/do nosso primeiro encontro/(vi nascer, nasci).”

Cartografia de cidades, espaços, vastidão. Palavrear é tentativa, vã, de domar o desconhecido. Ele desloca e re-aparece. De Paris a Ouro Preto, passando por Brasília, Istambul e Nova York, os caminhos dos poemas são muitos. Aí, há espaço imenso para etnografar gentes, sentimentos, dores e cores, muitas cores! O poeta brinca com palavras, assim como brinca com as cores.

Aliás, nos poemas, uma etnografia das cores nos levaria, sem dúvida, a uma variedade imensa de flores: rosas, begônias, tulipas, gérberas… até o ipê é uma flor! Nesse sentido, o livro de Di Bernardi pode ser lido, também, como um pequeno tratado das cores e das flores. Não é por acaso que um seu poema se chama “A vitória das cores sobre os elementos” e o “Das sete cores, ou mais”. As cores são elementares! O passeio pela poesia ou, se preferirem, pelo bosque inventado linguageiramente por Di Bernardi, nos permite cartografar caminhos e identificar uma inumerável gama de formas das flores e das cores, ou navegar mares e estações variadas de amores, há também espaço para medos e temores. É do medo que se fala de lá de onde faltam palavras, pois lá “o início, o brilho da hora principal/ de seduzir o medo, que me compus”.

Do medo que se vive, do medo que se fala nos poemas, nos dão pistas para uma outra entrada: os poemas como indício ou como sintoma de um tempo em que a morte ronda e a escrita parece ser um recurso para domá-la por meio da palavra. Vive-se! Morre-se! Escreve-se! Inscreve-se no texto porque o morrer é contínuo. É preciso saudar/saldar o viver!

“Escrever, escrever, escrever” repete incessantemente Di Bernardi, num eterno exercício de caligrafia: “Escrever, escrever, escrever/até alcançar, até merecer/a caligrafia definitiva”. O eu lírico fantasia que em “linha reta/ sou melhor abismo/só tenho sorte quando escrevo”. Mas tem a consciência de que escrita não extirpa o medo, pois ele desloca e volta: “Mas tenho medo/dessa caligrafia não ser mais a minha/ porque amanhã já é outro o idioma/ das dálias e dos pássaros reticentes”.

Mas escrever é, também, ler, passear pelos bosques da solidão, dos medos e das alegrias dos outros, em todas as artes. De Simbad a Diadorim, de Drummond a Picasso, tudo está ali. Nestes tempos sombrios, é na lectoescritura que se busca algum alento, proteção e guarda, e alguma clareza se possível. “A luz de Monet, os touros de Picasso/um brinco, um poema, um colar de cães/nos protege e guarda/de todos os males, amém.”

Luciano Mendes é professor titular da UFMG, autor e organizador de mais de 50 livros acadêmicos nas áreas de educação e história. Atualmente tem se dedicado à escrita literária e participado de coletivos de literatura, sendo o criador do Grupo Cidades das Letras: encontros com a literatura, nas redes sociais. Publicou A primeira página e outros contos mexicanos (Veñas Abiertas, 2020), Homens de bem (EIS Editora, 2021) e Entre mulheres (Caravana, 2021). 

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