Entro no bar “Que horas você volta?”, na vila Uberlândia. Os donos resolveram fazer a festa julina no último dia do mês, justo quando ninguém tem mais um centavo no bolso. Mas tudo bem, o pessoal tava pedindo por aquele momento, queria diversão, queria dançar, queria bandeirinhas. Algumas mulheres ainda colocaram o traje de arraial e estavam rindo e se divertindo um monte. A barraquinha com quentão, pinhão duro e bolo se esgotava rápido, e eu esperava do lado de fora a chegada do meu amigo Ivo, pra gente tomar uma cerveja e, como sempre, repassar os fatos da semana. O problema é que estava frio e o Ivo demorando. Então, resolvi entrar, passei pela mesa de sinuca e me encostei no balcão, onde ocorreu a cena estranha que vou tentar narrar pra vocês. Um senhor ao meu lado, cabelos grisalhos, olhos esbugalhados e perdidos no lodo de uma olheira profunda, conversando como se fosse comigo, mas sem olhar pra mim, de alguma forma falava da minha situação, só que eu não o conhecia. E, se ele estivesse falando dele mesmo, como poderia ser uma tradução tão precisa de mim? — Estou muito pressionado e com medo, ele afirmou. — Medo de quê? acabei perguntando, sem muita certeza se, nessa espécie de transe, ele me responderia. — Acabei denunciando o favorecimento nas obras da Cohab. Eles já estão em cima de mim. — Como assim? O que senhor está sabendo? — O mesmo que você. Ou você sabe o mesmo que eu? — Sei que a Cohab está…. — Favorecendo. — Como você sabe? — O Cleiton da Quebrada. — Sim, o Cleiton. — E os… — E os amigos dele. — Isso aí. — Que não tolera mais as minhas críticas e vai dar um jeito de calar a minha boca. Aquele momento foi de uma verdadeira tontura. Me deu até pressão baixa e precisei me segurar. Aquele velho falava dele, falava de mim, falava de nós dois? Como ele sabia dessas informações todas? Seu discurso parecia retirado de dentro de mim, tirando meu sono, e agora exposto dessa maneira crua, sem sentido e sem aparente fonte, me assustava ainda mais. — Eu sabia que isso ia acontecer. A gente sempre sabe. — Sempre sabe o quê, meu senhor? — A gente vê uma treta, um probleminha né, bem no começo, mas não pensa que ele vai crescer, desenvolver, que vai estourar uma hora. — É sobre o Cleiton? — Eu era amigo dele, não era? — Sim, eu era. — Só que isso foi tensionando, ele quis se beneficiar. — Isso ele fez. — E passou a me ameaçar. — Sim, ele me ameaça, nos ameaça, não entendo mais. Mas é isso. Até esqueci do ambiente ao meu redor. Pessoas se agarrando o quanto podiam na noite de bailão, tropeços, vômitos e saltos na entrada do banheiro, arte e técnica na mesa de sinuca. Uma madrugada que poderia se estender no tempo. E ainda esqueci de Ivo, que não havia aparecido e provavelmente deu o cano, porém nada de mais trivial interessava, só a minha situação tensa com aquele senhor íntimo e desconhecido. — Ele me esperou na esquina ali com o barracão do Tani. — Quando? — Agora há pouco. — Você falou com o Cleiton? — Sim, ele queria me matar. — Será que ele tá me esperando também? — Sim, ele tá de tocaia. Neste exato instante. — Mas ele não te matou. Só quer a mim? — Não, a mim também. E matou também o Ivo. — Meu Deus, o Ivo. Mas ele matou o Ivo e te deixou viver? — Ele não me deixou viver. — Então? — Eu fui morto pelo Cleiton da Quebrada. — O quê? — E você no fundo sabe que também será.
Crônicas Editoriais
Você no fundo sabe que também será
Pedro Carrano nasceu em São Paulo, SP, em 1980, e vive em Curitiba desde os 10 anos. Publicou Vértebras e um Primeiro Testamento (2013), Cidade das Pessoas (2016), Sanga (2017), Entre Muros e Montanhas (2017) e História da Comuna de Oaxaca (2018), além de Meninos sem matilha e Com os ossos abertos, ambos em 2020. Carrano também é repórter e colunista.